Uns veem e outros não veem. Os cegos veem e os que julgam ver são cegos. Pode um cego guiar outro cego? Não caem os dois em algum buraco? Os fariseus são guias, o cego vê. O cego acredita e as trevas tornaram-se luz. Os fariseus julgam acreditar, mas não conseguem ver e a luz que julgam ter são trevas.

Uns veem, creem e adoram e outros fecham o coração. Ele veio para os seus e os seus não o receberam. Mas a quantos o receberam e acreditaram no seu nome deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus.

Enquanto Jesus caminhava, viu um homem cego de nascença. E os seus discípulos perguntaram:

— Mestre, quem pecou para que este homem nascesse cego? Ele ou os pais dele?

Jesus respondeu:

— Nem ele pecou, nem os pais dele; mas isso aconteceu para que nele se manifestem as obras de Deus. É necessário que façamos as obras daquele que me enviou enquanto é dia; a noite vem, quando ninguém pode trabalhar. Enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo.

Depois de dizer isso, Jesus cuspiu na terra, fez lama com a saliva e com a lama untou os olhos do cego. Então disse ao cego:

— Vá lavar-se no tanque de Siloé. Siloé quer dizer “Enviado”.

O cego foi, lavou-se e voltou vendo. (João 9,1-7)

O capítulo 9 de João é verdadeiramente uma joia narrativa, lapidada em profunda teologia. Constitui, em seu gênero, uma pequena obra de arte dramática: põe em confronto o cego curado com os judeus espiritualmente incapacitados de ver. Destaca-se, por um lado, a atitude sincera de uma pessoa do povo (am-haarets), sem instrução, mas dotada de bom senso; e, por outro lado, o fechamento dos mestres do povo. O cego não só foi curado de sua desventurada cegueira física, mas conquistou valentemente a luz da fé; transforma-se em testemunha da verdade. Ressalta-se a obstinação dos intérpretes oficiais da lei na cegueira de sua incredulidade. Os fariseus se recusam a abrir os próprios olhos para a luz, não querem se render à evidência dos fatos.

O texto evangélico está construído em oito quadros: começa com a cura do cego; uma vez curado, este passa pela avaliação dos seus vizinhos e conhecidos; também os fariseus avaliam a sua nova condição; os pais são confrontados pelos fariseus sobre o que se passou com o filho; os fariseus chamam novamente o homem para nova avaliação; Jesus encontra de novo o cego e revela-se; Jesus afirma-se como Juiz e denuncia a cegueira dos fariseus.

No início está um cego que é curado por Jesus e no final do texto aquele que era cego consegue ver quem é Jesus e reconhecer que ele é o Filho do Homem, mas surgem vários cegos, os fariseus, que apesar de verem são cegos, porque não conseguem reconhecer quem é Jesus.

O texto apresenta algumas curiosidades: Jesus põe lama nos olhos do cego e manda-o lavar-se na piscina de Siloé, que significa ‘enviado’. Ora o enviado é Jesus. O cego, conhecido de todos, parece ter adquirido uma nova fisionomia de modo que ninguém o reconhece. Curado, o cego, faz um caminho no conhecimento de Jesus, primeiro apenas sabe que é um homem, mais adiante já sabe que tem o nome de Jesus, a seguir afirma que é um profeta, depois diz que ele vem de Deus e termina prostrado diante de Jesus reconhecendo que ele é o Filho do Homem.

Todo o capítulo está englobado em uma grande inclusão forjada pelo nexo íntimo entre pecado e cegueira. Na primeira passagem (9,1ss) essa cegueira é posta em relação com o pecado. No verso final (9,41) Jesus fala da cegueira espiritual dos fariseus, fruto da obstinação na descrença. “Viu Jesus um cego de nascença … Quem pecou … para que nascesse cego? … Se fosseis cegos não teríeis pecado … o vosso pecado subsiste.” Existem dois tipos de cegueira, postos em antítese. O primeiro tipo não é consequência do pecado, é curado e obtém a visão, isto é, a fé. O segundo é consequência do pecado, e não é curado, permanece obscurecido.

O Mestre declara que o cego está ali e ele vai dar-lhe a vista, quer que o homem saia de sua miséria e o ajuda. A vida de Jesus é como um dia de trabalho e de luz, à qual porá termo a hora (12,23.35) e a noite da traição (Jo 13,30). Nessa jornada de trabalho ele não pode perder um minuto; sua missão é iluminar. A metáfora da luz indica a revelação salvadora de Jesus. O plural nós se refere primordialmente a Jesus, mas inclui também a futura atividade de nós cristãos que temos de seguir a mesma linha de Jesus: libertar o homem (deveremos realizar as obras que Ele realiza: 14,12) e compartilhar seu destino (15,20).

O cego de nascença vai nascer para uma nova existência. Fica transformado completamente, com uma mudança radical, comparável ao nascimento do alto (3,3): Quem não nascer de novo não poderá ver o Reino de Deus. Surpreende a intervenção milagrosa com barro. O gesto é mencionado quatro vezes no relato (6.11.14.15). O emprego da saliva era um meio de cura nas concepções populares: a saliva tinha valor terapêutico (Mc 7,33; 8,23). A piscina de Siloé, o único lugar que se menciona no relato, está situada a sudoeste da cidade velha; encontrava-se na saída de um túnel construído por Ezequias (740 a.C.) para levar para Jerusalém as águas da torrente de Gion (2Cr 32,30). Daí a etimologia popular: água enviada. O evangelista interpreta o nome da piscina em sentido cristológico, como um particípio passivo (do verbo hebraico shalah). O enviado por excelência é Jesus (Jo 6,29; 10,36). Assim, para João a piscina simboliza o Verbo encarnado, no qual os cegos, levando-se, adquirem a visão. O texto diz que o cego voltou enxergando. Narra-se o efeito, mas não o processo.

Quando o cego volta já curado, Jesus já desaparecera. Ficam sozinhos o enfermo curado e os homens que adotam diversas reações em face do cego e de Jesus. Assiste-se a um processo contra Jesus, em sua ausência. Cada um manifestará o que traz enfronhado em seu coração. Cada reação é anotada pelo evangelista. Propõe-se imediatamente o como se fez, cujo conhecimento se transforma num leitmotiv (motivo condutor) do relato (10.15.16.19.21.26).

Vemos o sinal discutido (9.13-34); os vizinhos e conhecidos o conduzem aos fariseus. Há o primeiro interrogatório do cego curado (9.13-17); a dificuldade dos fariseus é real. Ocorre o interrogatório dos pais (9,18-23); a menção do verbo “temer” indica a tensão em que se vivia então. Os pais mostram-se muito evasivos por terem medo de serem expulsos da sinagoga. Indica que o texto deve ser lido no tempo da Igreja (como duplo horizonte). A passagem convida cada leitor a tomar uma posição: identificar-se com o cego de nascença, isto é, estar aberto à palavra de Jesus e defendê-la ou, ao contrário, como os pais do cego, ter medo de confessar sua fé; ou como os fariseus, fechar-se a toda a revelação.

Epílogo (9,35-38); é o desenlace. O relato não pode acabar com um fracasso, a expulsão da sinagoga do cego curado. Agora Jesus toma a iniciativa e entra decisivamente em cena. Em contraste com os fariseus que o expulsaram, Jesus se deixa encontrar, vai à busca do cego. Ilustra-se sua palavra: O que vem a mim não o lançarei fora (6,37). No primeiro encontro não havia diálogo; agora sim ocorre entre ambos um intenso e emotivo diálogo. Propõe-lhe uma pergunta, que além do mais resulta surpreendente: Crês no Filho do Homem? (9,35). Esse título aparece dez vezes no evangelho. Aqui é a única vez em que se utiliza com um emprego absoluto, como se referindo à totalidade do mistério de Jesus. A resposta do cego mostra que não conhecia de todo a identidade de Jesus, mas pressente que ele, depois de lhe ter aberto os olhos, propõe uma adesão à sua pessoa, como fonte absoluta de vida. Em concordância com todo o relato, entretecido com a cadência da visão, Jesus não responde: Eu sou, mas sim Tu o vês. Surpreendentemente se utiliza por sua vez primeira o verbo horao distinto de blepo ou anablepo que antes apareceu como profusão, para indicar uma visão mais profunda que outra não é senão a visão da fé.

Tudo começou com a palavra de Jesus que é obedecida. No final, o homem curado não conheceria Jesus se este não tivesse falado com ele. A palavra de Jesus é o dom por excelência, que lhe permite passar das trevas para a luz divina. O homem curado mostra a sua fé com um sinal: “prostra-se” diante dele. O verbo prostrar-se tem no evangelho um significado forte de adoração, como no diálogo com a samaritana (4,20-23). Aqui, todavia, encerra um sentido mais rico. Aquele que é objeto desse gesto, não é o novo templo da Presença? Expulso do templo, encontra agora em Jesus o novo templo. O cego de nascença, uma ovelha extraviada, que foi encontrada por Jesus. Ouve a voz do Pastor, a fim de ser conduzida para o Pai, como se desenrolará no capítulo 10.

A controvérsia (9,39-41). Jesus diz sua última palavra sobre os fariseus incrédulos, estes personagens tão orgulhosos de seu saber que excluem toda possibilidade de que Jesus possa ser um homem enviado por Deus. O v.39 une-se a 9.5: Enquanto estou no mundo, sou a luz do mundo. Agora se manifestam os efeitos dessa revelação da luz; quando é acolhida e quando é recusada. Jesus não condena os fariseus; admoesta-os para que se conscientizem, reconheçam seu fechamento e seu orgulho, abram-se à evidência da verdade. Os fariseus não só são cegos voluntários, mas procuram cegar outros. O evangelista João não conhece maior pecado que a recusa da luz.

Trata-se de um relato repleto de elementos que caracterizam o caminho de adesão a Jesus, o Filho do Homem. Ele é a luz que ilumina todo o homem que vem a este mundo, mas a noite ainda não terminou, pode sempre surpreender-nos, “vem aí a noite, em que ninguém pode atuar”, diz Jesus.

Mas a este ponto surge uma dúvida: Tudo, portanto, já aconteceu no início de nossa vida cristã, no novo nascimento? Não haverá nada que diga respeito à nossa existência de hoje, que tenha a ver com a vida que estou vivendo agora? Ouçamos o que nos diz São Paulo em Efésios (5,8-14):

Porque no passado vocês eram trevas, mas agora são luz no Senhor. Vivam como filhos da luz — porque o fruto da luz consiste em toda bondade, justiça e verdade —, tratando de descobrir o que é agradável ao Senhor. E não sejam cúmplices nas obras infrutíferas das trevas; pelo contrário, tratem de reprová-las. Pois aquilo que eles fazem em segredo é vergonhoso até mencionar. Mas todas as coisas, quando reprovadas pela luz, se tornam manifestas; porque tudo o que se manifesta é luz. Por isso é que se diz: “Desperte, você que está dormindo, levante-se dentre os mortos, e Cristo o iluminará.”

Mas somos de verdade agora todos e somente luz? Por que, então, aquela espécie de grito final, ecoando como no meio da noite, que nos dirigiu o apóstolo: “Desperte, você que está dormindo, levante-se dentre os mortos, e Cristo o iluminará.”

Na verdade, nós estamos em parte na luz, e em parte nas trevas. Temos, sim, recebido o dom da fé, mas como um germe, que deve crescer, desenvolver-se com a graça de Deus e com nossa liberdade. Nossa situação é realmente paradoxal. Estamos, por assim dizer, naquele fio que divide uma zona luminosa daquela que está na sombra: em qualquer lugar que vamos, carregamos grudada em nós aquela zona de sombra. É nossa humanidade ainda não resgatada, não evangelizada. São os impulsos tenebrosos que São Paulo chamou as obras infrutuosas das trevas. O que pulula nesta zona de sombra é vergonhoso até mencionar: fornicação, impureza, libertinagem, idolatria, superstição, inimizades, brigas, ciúmes, ódio, ambição, discórdias, partidos, invejas, bebedeiras, orgias e outras coisas semelhantes (Gl 5,19-21). Luz e trevas significam, portanto, algo mais do que as verdades de fé que já conhecemos e as verdades que ainda desconhecemos. Designam, ao invés, as obras concretas, as escolhas evangélicas, ou contrárias ao Evangelho, que fazemos no dia a dia.

Há, porém, outro simbolismo da luz que não podemos hoje deixar inexplorado. Por que nossa fé é comparada a uma luz? O que faz a luz? Ele nos mostra as coisas, nos dá sentido das distâncias e das proporções, nos orienta. Todos nós tivemos já a experiência da escuridão numa sala onde não se vê mais nada, não sabendo mais onde está a porta, a janela, e com medo contínuo de tropeçar nalguma coisa. Ora, assim – diz São Paulo – caminhava na vida o pagão antes de Cristo: às apalpadelas (At 17,27). Veio Cristo e foi como se surgisse uma grande luz. Ele revelou aos homens o Pai, o sentido da vida e do mundo. Deu resposta àquelas eternas interrogações que o homem desde sempre se faz e que um autor do segundo século assim formulava: “Quem somos? Donde viemos? Para onde vamos?” (Teódoto).

A fé dá, portanto, a quem crê uma visão da vida. É algo estranho que o cristão também hoje procure em sua fé uma resposta a problemas como o da justiça social, das relações de trabalho, da doença, do tempo livre, do matrimônio, do aborto? E, contudo, há hoje uma forte pressão por parte de certas forças que obrigam o cristão a esconder, por assim dizer, sua fé e suas certezas, quando da oração passa à prática, da igreja passa à praça. Se não faz assim é tachado indiscriminadamente de atrasado. O que se pretenderia é uma fé cega, um cristão, isto é, dividido em dois: o homem e o cidadão de um lado, e o crente do outro. É uma pressão à qual muitos cristãos hoje cedem psicologicamente, reduzindo assim a fé a um momento aparente quando está no templo ou em uma reunião de comunhão nas casas.

Mas o que é tudo isto senão, precisamente, um acender a lâmpada para depois pô-la debaixo de uma vasilha? (cf Mt 5,15). Cristo, certamente, não pensava assim: ele, ao contrário, falou de uma luz que deve ser posta sobre o candelabro para iluminar aqueles que estão em casa. Ou seja, uma luz que não deve servir só ao discípulo, mas a todas as pessoas, mesmo não crentes. O cristão não deve se contentar em ser “um iluminado”, deve ser também uma “testemunha da luz” (cf Jo 1,8). Por isso, não é a preço de tal renúncia que se pode pedir a um crente que colabore com outras forças ideológicas e políticas.

Há um diálogo entre duas personagens de um drama de Paul Claudel (Le père humilié), quando uma jovem hebreia cega diz a um cristão: “Vós que enxergais, o que fizeste da luz?”. Pois é, o que estamos fazendo nós, discípulos de Cristo, da luz que recebemos? A pessoa que nos ouve, que nos vê, percebe que somos homens/mulheres de fé, que julgamos as pessoas e os eventos do mundo com as certezas que nos vêm do Evangelho? Caminhamos realmente “como filhos da luz?” (cf Ef 5,8), isto é, como pessoas honestas e transparentes?

Todos os olhos recebem a luz, mas os nossos devem também doá-la; nosso olho – disse Jesus – deve ser como uma luz (cf Mt 6,22). 

Agora, depois de nos ter falado em seu Evangelho, Jesus nos convida a nos sentar à mesa com Ele. Ele sabe que não precisamos apenas de luz para ver, mas também de alimento, para ficarmos fortes e não desanimarmos pelo caminho. A luz do mundo (Jo 8,12) vem se abrigar dentro de nós, sob o nosso teto.