“Vi a tua salvação!”. Evangelho segundo Lucas 2:30

Uma mãe solteira, um homem que aceita ser pai de um menino que não lhe pertence e um menino em tudo igual aos outros. Nesta família, aparentemente marcada pela imperfeição, os olhos podem ver o pecado, o insólito, o desassossego ou a novidade de Deus que desce à terra.

Dois velhos, incansáveis (Simeão e Ana; cf. Lc 2,22-40), livres de preconceitos, veem como Deus vê e descobrem a realização da sua esperança no filho de Maria.

Uma espada, uma pedra de tropeço, um Deus que se revela às nações a partir de Jerusalém.

Simeão e Ana são dois idosos que não se cansam de esperar, confiados na promessa de Deus, e animados pelo Espírito. A luz de Deus ajuda-os a ver como Deus vê, por isso, naquela criança igual a todas as crianças, eles reconhecem a diferença fundamental, este menino e não outro, é a salvação prometida para a libertação de Israel.

A cena do evangelho revela a família de Nazaré no cumprimento das prescrições da lei. Curioso que Lucas começa por falar dos dias da purificação da mãe para passar de imediato a falar da circuncisão do filho. Como todas as mulheres, depois de dar à luz, Maria tem que cumprir o ritual de purificação para participar no culto. Mas para Lucas o importante é o que diz respeito a Jesus, o filho primogênito.

A ida ao templo para circuncidar o menino envolve-se em duas cenas de grande revelação. Aparece Simeão, aquele cujo nome significa “escutador”, caracterizado por Lucas como um ancião “justo”, “piedoso”, “esperava a salvação”, “estava cheio do Espírito Santo”. Este homem era “movido pelo Espírito Santo” e tinha recebido uma promessa “não morreria antes de ver o Messias do Senhor”.

Ao reconhecer o Messias, no filho de Maria, Simeão “toma-o nos braços” e entoa um cântico de louvor, no qual se reconhece como servo do Senhor e expressa a sua alegria porque os seus olhos viram a salvação que é cumprimento da promessa que lhe foi feita e que se destina a todos os povos.

A bênção que Simeão dá à família de Nazaré é acrescida de palavras complexas sobre o futuro do menino e de sua mãe. O menino é, para uns, “sinal de contradição”, pedra de tropeço, para outros, esperança de salvação e para sua mãe “uma espada trespassará a tua alma”.

Aparece também uma mulher chamada Ana. Dela se diz que tem oitenta e quatro anos, foi casada sete anos, é viúva, é profetiza, é filha de Fanuel e pertence à tribo de Aser. Todos estes elementos são importantes para definir a mulher já idosa que, depois de Simeão louvou o Senhor por causa do menino. É uma mulher feliz, que viveu um casamento de curta duração, mas muito realizador, vive tranquila na sua condição de viúva e a sua consagração a Deus. Não sabemos o que esta mulher disse naquele encontro, mas sabemos que falava do “menino a todos os que esperavam a libertação de Israel”.

Do menino o evangelista termina a dizer que crescia na presença de Deus, forte e cheio de sabedoria.

CUMPRIDAS TODAS AS COISAS segundo a Lei do Senhor, voltaram para a Galileia, para a sua cidade de Nazaré. O menino crescia e fortalecia-se, cheio de sabedoria, e a graça de Deus estava com Ele (cf Lc 2,39-40).

O Messias quis começar a sua tarefa redentora no seio de uma família simples, normal. O lar onde nasceu foi a primeira realidade humana que Jesus santificou com a sua presença.

Nesse lar, José era o chefe de família; como pai legal, era a ele que cabia sustentar Jesus e Maria com o seu trabalho. Foi ele quem recebeu a mensagem do nome que devia dar ao Menino – você lhe dará o nome de Jesus (Mt 1,21) – e as indicações necessárias para proteger o Filho: Levanta-te, toma o Menino e foge para o Egito (Mt 2,13), Levanta-te, toma o Menino e volta para a pátria. Não vá a Belém mas a Nazaré. Dele aprendeu Jesus o seu ofício, o meio de ganhar a vida. Jesus devia manifestar-lhe muitas vezes a sua admiração e o seu carinho.

De Maria, Jesus aprendeu maneiras de falar, ditos populares cheios de sabedoria, que mais tarde utilizaria na sua pregação. Viu com certeza como Ela guardava um pouco de massa de um dia para o outro, como lhe jogava água e a misturava com a nova massa, deixando-a fermentar bem abrigada debaixo de um pano limpo. Quando a Mãe remendava a roupa, o Menino devia observá-la; se uma peça tinha um rasgão, Maria procuraria um pedaço de pano que se ajustasse ao remendo. Jesus, com a curiosidade própria das crianças, perguntar-lhe-ia por que não se servia de um tecido novo; e Maria explicar-lhe-ia que os retalhos novos, quando são molhados, estiram o pano anterior e o rasgam; por isso era preciso fazer os remendos com pano velho … E quanto às melhores roupas, que se reservavam para os dias de festa e costumavam ser guardadas numa arca, sua Mãe tinha sem dúvida muito cuidado em colocar junto delas certas plantas olorosas, para evitar que a traça as destruísse.

Tudo isto aparecerá anos mais tarde na pregação de Jesus e leva-nos a pensar num ensinamento fundamental para a nossa vida diária: “A quase totalidade dos dias que Maria passou na terra decorreram de forma muito parecida à de milhões de outras mulheres, ocupadas em cuidar da família, em edificar os filhos, em levar a cabo as tarefas do lar. Maria santifica as coisas mais pequenas, aquelas que muitos consideram erroneamente como intranscendentes e sem valor: o trabalho de cada dia, os pormenores de atenção com as pessoas queridas, as conversas e visitas por motivos de parentesco ou de amizade. Bendita normalidade, que pode estar repassada de tanto amor de Deus” (Josemaria Escrivá).

Entre José e Maria havia carinho santo, espírito de serviço e compreensão. Assim é a família de Jesus: separada para o amor, santa, exemplar, modelo de virtudes humanas, disposta a cumprir com exatidão a vontade de Deus. O lar cristão deve ser imitação do de Nazaré: um lugar onde Deus caiba plenamente e possa estar no centro do amor entre todos.

É assim o nosso lar? Dedicamos-lhe o tempo e a atenção que merece? Jesus é o centro? Sacrificamo-nos pelos outros? São perguntas que podem ser oportunas na nossa oração de hoje, enquanto contemplamos Jesus, Maria e José em seu cotidiano.

NA FAMÍLIA, os pais devem ser para os filhos os primeiros educadores da fé, mediante a Palavra e o exemplo. Isto cumpriu-se de maneira singularíssima no caso da Sagrada Família. Jesus aprendeu de seus pais o significado das coisas que o rodeavam.

A família de Nazaré devia recitar com devoção as orações tradicionais que se faziam em todos os lares israelitas, mas naquela casa tudo o que se referia particularmente a Deus tinha um sentido e um conteúdo novos. Com que prontidão, fervor e recolhimento Jesus devia repetir os versículos da Sagrada Escritura que as crianças hebraicas tinham que aprender! Devia recitar muitas vezes essas orações aprendidas de seus pais.

Ao meditarem nestas cenas, os pais devem considerar com frequência essa orientação: Vocês ensinam às suas crianças as orações dos cristãos? Preparam seus filhos, de comum acordo com os sacerdotes de sua comunidade? Acostumam-nos, se estão doentes ou com alguma limitação e dificuldade, a pensar em Cristo e sua vocação de carregar a cruz e em tudo ser agradecido pois tudo coopera para o bem daqueles que amam a Deus? Sabem orar com seus filhos, com toda a comunidade doméstica, em seu cotidiano? O exemplo que derem com sua retidão de pensamento e de ação, apoiado numa vida de oração, valerá por uma lição de vida, valerá por um ato de culto de mérito singular; vocês levam desse modo a paz ao interior dos muros domésticos. Lembrem-se de que assim edificam a Igreja!

Os lares cristãos, se imitarem a família sagrada de Nazaré, serão lares luminosos e alegres, porque cada membro da família se esforçara em primeiro lugar por aprimorar o seu relacionamento pessoal com o Senhor e, com espírito de sacrifício, procurará ao mesmo tempo chegar a uma convivência cada dia mais amável com todos os da casa.

A família é escola de virtudes e o lugar habitual onde devemos encontrar a Deus. “A fé e a esperança têm que manifestar-se na serenidade com que encaram os problemas, pequenos ou grandes, que surgem em todos os lares, no ânimo alegre com que se persevera no cumprimento do dever. Assim, o amor inundará tudo e levará a compartilhar as alegrias e os possíveis dissabores, a saber sorrir, esquecendo as preocupações para atender os outros; a escutar o cônjuge ou os filhos, mostrando-lhes que são queridos e compreendidos de verdade; a não dar importância a pequenos atritos que o egoísmo poderia converter em montanhas; a depositar um amor grande nos pequenos serviços de que se compõe a convivência diária. Santificar o lar, dia a dia; criar, com carinho, um autêntico ambiente de família: é disso que se trata” (Josemaria Escrivá).

O exercício das virtudes teologais (fé, esperança e amor) no seio da família alicerçará a unidade que a Igreja nos ensina através dos Salmos por exemplo: Como é bom e agradável quando os irmãos vivem em união! Pois a união é preciosa como o óleo da unção, que era derramado sobre a cabeça de Arão e descia por sua barba, até a bainha de suas vestes. É revigorante como o orvalho do monte Hermom que desce sobre os montes de Sião. Ali o Senhor pronuncia sua bênção e dá vida para sempre (Sl 133).

UMA FAMÍLIA UNIDA, como igreja doméstica, comunidade de fé e de amor tem de manifestar-se em cada circunstância como testemunho vivo de Cristo, à semelhança da própria Igreja. A família cristã proclama em voz muito alta tanto as presentes virtudes do Reino como a esperança da vida bem-aventurada.

Cada lar cristão tem na Família Sagrada de Nazaré o seu exemplo mais pleno; nela, a família cristã pode descobrir o que deve fazer e como deve comportar-se, para a santificação e a plenitude humana de cada um de seus membros. Nazaré é a escola onde se começa a compreender a vida de Jesus: a escola do Evangelho. Aqui se aprende a olhar, a escutar, a meditar e penetrar o significado, tão profundo e tão misterioso, dessa muito simples, muito humilde e muito bela manifestação do Filho de Deus entre os homens. Aqui se aprende até, talvez insensivelmente, a imitar essa vida.

A família é a forma mais básica e mais simples da sociedade. É a principal “escola de todas as virtudes sociais”. É a sementeira da vida social, pois é na família que se pratica a obediência, a preocupação pelos outros, o sentido de responsabilidade, a compreensão e a ajuda mútua, a coordenação amorosa entre os diversos modos de ser. Isto se realiza especialmente nas famílias numerosas, sempre encorajadas pela Igreja. Com efeito, está comprovado que a saúde de uma sociedade se mede pela saúde das famílias. Esta é a razão pela qual os ataques diretos à família são conflitos determinados à própria sociedade, cujos resultados não tardam a manifestar-se.

Visto que Deus os escolheu para ser seu povo santo e amado, revistam-se de compaixão, bondade, humildade, mansidão e paciência. Sejam compreensivos uns com os outros e perdoem quem os ofender. Lembrem-se de que o Senhor os perdoou, de modo que vocês também devem perdoar. Acima de tudo, revistam-se do amor que une todos nós em perfeita harmonia (Colossenses 3:12-14).

Paulo recorda que devem viver os sentimentos que se encontram em Cristo e guardar a Palavra de Deus para que seja ela o critério para todas as situações da vida comunitária e familiar.

De modos diferentes, cada leitura dos textos bíblicos aqui apresentados, vão demonstrando uma cultura, um destino, um caminho, uma proposta de Deus para a família, que se pauta pela simplicidade, pela carência, pela harmonia das relações, pelos sentimentos de fidelidade uns aos outros e a Deus, pela escuta da Palavra de Deus e docilidade ao Espírito Santo.

Há uma relação direta entre o amor a Deus e o amor aos pais, mesmo que eles sejam de idade avançada e tenham a mente enfraquecida, porque o amor aos pais é catalisador do perdão e da misericórdia de Deus.

Há nos pais e nos idosos um patrimônio que deve ser reconhecido por todos. Simeão e Ana são exemplos de pessoas que transportam dentro de si a promessa e a esperança da sua realização. Este patrimônio que os preenche, juntamente com a dinâmica do Espírito que os orienta nas decisões da vida, não pode perder-se com a sua morte. Este patrimônio da esperança, da fé e do Espírito de Deus, é de tal modo valioso que tem que permanecer para lá da morte, para que todos, os que ficam, continuem a ser capazes de ver Deus acontecer nos olhos de uma criança como Jesus, numa família imperfeita como a de Nazaré, numa mãe de coração trespassado como o de Maria, num pai de coração generoso como José.

Este patrimônio que vive dentro dos mais velhos, que amadureceram com as experiências vividas e com a herança que receberam dos seus pais e avós, parece ser indiferente nos tempos que vivemos hoje. Sente-se que os mais velhos julgam não ter nada para ensinar, nada a transmitir, nada que valha a pena e seja útil aos mais novos que brincam com a tecnologia na ponta dos dedos. Sente-se que os mais novos acreditam que a solução para tudo está no conhecimento dos mistérios da tecnologia e, como os mais velhos não são especialistas nesta matéria, não precisam de lições dos avós nem mesmo dos pais.

A verdade é que há um patrimônio mais importante que o conhecimento tecnológico. O homem precisa de uma resposta que está mais nos “sentimentos de misericórdia, de bondade, humildade, mansidão e paciência”, no perdão e no amor, na palavra de Deus e no seu Espírito, do que na ciência, na tecnologia, na técnica ou na inteligência artificial que parecem inebriar as mentes atuais de novos e menos novos.

Só o Espírito pode despertar em todos, mais novos e mais velhos o olhar capaz de reconhecer a importância deste patrimônio, de modo que uns o queiram transmitir e outros o queiram receber e guardar como um tesouro que podem, por sua vez, transmitir a outros.

Simeão e Ana vivem nesta luz do Espírito que os deixa ver e reconhecer no Menino de Maria o salvador, libertador de Israel, o Messias Filho de Deus, em quem se cumprem todas as promessas e se realiza a esperança definitiva do homem.

Maria, José e Jesus são, por isso mesmo, colocados hoje diante do olhar da comunidade cristã para que, não copiando o modelo de família, encontremos na nossa própria família os sinais da manifestação de Deus na simplicidade e na carência, tanto quando vivemos momentos de alegria como quando a espada de dor se atravessa nos nossos corações.

Em todo o caso, o cristão, revestido de Cristo no batismo, não perde do seu horizonte o amor, nem mesmo, mas fundamentalmente, nas relações familiares entre marido e esposa e entre pais e filhos.

Os meus olhos já viram, Senhor, o que fizeste por nós através da simplicidade da família de Nazaré. No coração de Maria encontramos o silêncio das coisas difíceis de entender, guardadas em oração. No coração de José, a generosidade que dá vida e paternidade ao filho de uma mãe solteira. No coração de Jesus encontramos o próprio amor de Deus que se derrama em nossos corações. Faz das nossas famílias, Senhor, lugares onde os verdadeiros sentimentos dão consistência às relações de cada dia.

Que tal assumirmos esse compromisso: Querer ver e esperar como Simeão e Ana.