Reconhecemos nós a voz de Cristo
Filósofos, cientistas e sábios com frequência reivindicam a superioridade de seus respectivos sistemas. Não é de surpreender, portanto — visto que assim Nosso Senhor como os fariseus eram mestres —, que houvesse uma disputa entre eles quanto às doutrinas. Mas Jesus, como sempre, recusou-se a se colocar no mesmo nível que os mestres humanos; reclamou singularidade como Mestre Divino.
No entanto, foi além. Veio para sacrificar a Si mesmo em favor de Suas ovelhas, não para ser Mestre de Seus pupilos. Os fariseus e Jesus discutiram acerca de Suas doutrinas. De um lado, chamou a Si mesmo de Porta que dava acesso exclusivo ao Pai; o porteiro ou o cuidador do aprisco; chamou a Si mesmo também de Pastor ou guardador das ovelhas, e por fim Ele era o Cordeiro que viria a tornar-se vítima. Do outro lado, comparou os fariseus àqueles que não entram pela porta e que, portanto, buscavam roubar o rebanho; e a mercenários que correriam quando viessem os lobos; e, por fim, a lobos que devorariam as ovelhas.
Eu sou a porta. Se alguém entrar por mim será salvo; tanto entrará como sairá e encontrará pastagem.
São João 10,9
Jesus não disse que havia muitas portas, nem que pouco importava por que outra porta alguém buscasse uma vida superior; Ele não disse que era uma porta, mas A Porta. Havia uma única porta na arca em que Noé e sua família entraram para ser salvos do dilúvio; havia uma única porta no Tabernáculo ou no Santo dos Santos. Reclamou para Si o direito exclusivo de admissão ou rejeição no rebanho de Deus. Não disse que Seu ensino ou Seu exemplo eram a porta, mas que Ele, pessoalmente, era o único acesso à plenitude da vida divina. Ele é único e não divide a honra com “colegas”, nem mesmo com Moisés, e tampouco com Zoroastro, Confúcio, Maomé ou quem quer que seja:
Ninguém vem ao Pai senão por mim.
São João 14,6
Depois de dizer aos fariseus que não eram de fato mestres, mas líderes cegos, desconhecedores e mercenários, colocou-Se a Si mesmo em contraste com eles não apenas como o Único Mestre, mas como algo infinitamente maior. E não estava meramente dando ideias ou leis, estava dando vida.
Eu vim para que as ovelhas tenham vida e para que a tenham em abundância.
São João 10,10
Os homens têm existência; o Senhor, no entanto, lhes daria vida; não a vida biológica ou física, mas divina. A natureza sugere, mas não pode dar essa vida mais abundante. Animais têm vida mais abundante que as plantas; o homem tem vida mais abundante que os animais. Disse ter vindo para dar uma vida que transcende o humano. Assim como o oxigênio não pode dar uma vida mais abundante à planta a menos que esta se renda a ele, assim também o homem não pode partilhar da Vida Divina a menos que Nosso Senhor se renda para dá-la.
Em seguida, o Senhor passou a demonstrar que deu essa vida não por Seu ensinamento, mas por Sua morte. Não era unicamente um Mestre, mas sobretudo um Salvador. Para ilustrar mais uma vez o propósito de Sua vinda, voltou ao Antigo Testamento. Nenhuma figura é empregada com mais frequência no Êxodo para descrever o Deus que conduz seu povo da servidão para a liberdade do que a de um pastor.
Os profetas também falavam dos pastores que guardavam um rebanho em bons pastos como distintos dos falsos pastores. Deus é retratado por Isaías como Aquele que leva sua ovelha nos braços (Isaías 40,11), e por Ezequiel como um pastor que procura a ovelha perdida (Ezequiel 34,12). Zacarias deu o retrato mais triste de todos ao profetizar que o Messias-pastor seria ferido e as ovelhas dispersas (Zacarias 13,7).
O mais conhecido é o Salmo 23, em que o Senhor é retratado conduzindo sua ovelha a pastos verdejantes. O Senhor revelou a que custo esses pastos verdejantes são comprados. Ele não era o Bom Pastor porque provia fartura econômica, mas porque entregaria a própria vida em favor das ovelhas. Mais uma vez, a Cruz aparece sob o símbolo do pastor.
Um anúncio consolador nos vem desse Salmo 23: O Senhor é o nosso pastor, de quem teremos medo? Para entender de quem se quer distinguir quando diz polemicamente: Eu sou o bom pastor; e: Todos quantos vieram [antes de mim] foram ladrões e salteadores (Jo 10,8), é preciso partir de uma página do profeta Ezequiel sobre os pastores de Israel, à qual certamente Jesus quis se reportar.
O mundo antigo estava cheio de pastores: pastores reais, que tornavam este trabalho tão familiar e importante; pastores, além disso, eram chamados os chefes, os reis, os sacerdotes. Mas a que correspondia esse título? Responde-nos o mesmo profeta Ezequiel numa dura acusação contra os chefes políticos e religiosos do povo eleito (os pastores de Israel);
Ai dos pastores de Israel que só cuidam do seu próprio pasto. Não é seu rebanho que devem pastorear os pastores? Vós bebeis o leite, vesti-vos de lã, matais as reses mais gordas e sacrificais, tudo isso sem nutrir o rebanho. Vós não fortaleceis as ovelhas fracas; a doente, não a tratais; a ferida, não a curais; a transviada, não a reconduzis; a perdida, não a procurais; a todas tratais com violência e dureza. Assim, por falta de pastor, dispersaram-se minhas ovelhas, e em sua dispersão foram expostas a tornarem-se presa de todas as feras (Ez 34:1-5).
Este quadro nos coloca diante da figura eterna e universal do “chefe” entre homens. O que escutamos, em outras palavras, é o modo com que os chefes, os dominadores e os poderosos sempre conceberam a sua relação com os homens, seus súditos. Uma relação de dominação e de espoliação: sugar dos súditos tudo o que é possível, como se aproveita das pobres ovelhas o leite, a lã e a carne deixando-as o mais possível “ovelhas”, isto é, fracas, doentes, feridas, sobretudo dispersas, isto é, divididas entre elas de modo que se possam dominar facilmente com violência e dureza, como diz o profeta.
Jesus, em seu tempo, constatava amargamente esta realidade chocante da dominação que se instala em cada poder humano. Dizia: Os reis dos pagãos dominam como senhores, e os que exercem sobre eles autoridade chamam-se benfeitores (cf Lc 22,25). No longo discurso sobre o bom-pastor, Jesus fala desses falsos pastores humanos, com muita lucidez: são mercenários; a eles não interessam nada as ovelhas; diante do perigo, fogem e deixam que as ovelhas sejam devoradas (cf Jo 10,12). Não é necessário pensar que ele aluda somente os chefes zelotes que então atiçavam o lobo – isto é, os romanos – para depois fugir e esconder-se à sua chegada, deixando o povo carregar as consequências das duras repressões do dominador estrangeiro.
O quadro é bem universal; é o amargo quadro do domínio do homem sobre o homem, da autoridade como dominação e exploração dos fracos. Este domínio está radicado no egoísmo humano, e por isso é definitivo. Ao longo dos séculos, deu-se por vezes um aspecto humano, se revestiu até de filantropia, mas se olharmos mais a fundo, veremos que, salvo raras exceções (houve também reis santos!), a situação não mudou em relação ao tempo de Cristo. Há ainda regiões sobre a terra onde a situação é pior do que nos tempos de Jesus, onde o homem domina sobre o homem com violência e dureza; a humanidade nunca ficou e nem hoje está livre de tiranos.
Por que Jesus, então, usou uma imagem já desvirtuada pela experiência humana? Por que se chama “bom-pastor” e continua a nos chamar “seu rebanho”? Não teme, chamando-nos “suas ovelhas”, ferir nossa sensibilidade e ofender nossa dignidade de homens livres? A resposta está nisto, que, não obstante todos os abusos humanos, Deus nunca renunciou a seu título de pastor, como não renunciou ao título não menos comprometedor de “rei”. Falando pela boca do profeta Ezequiel, depois da forte repreensão que ouvimos, ele acrescenta:
Com efeito, assim diz o Senhor Javé: vou tomar eu próprio o cuidado com minhas ovelhas, velarei sobre elas. Como o pastor se inquieta por causa do seu rebanho, quando se acha no meio de suas ovelhas tresmalhadas, assim me inquietarei por causa do meu; eu o reconduzirei de todos os lugares por onde tinha sido disperso em um dia de nuvens e de trevas. Para pastoreá-las suscitarei um só pastor, meu servo Davi. Será ele quem as conduzirá à pastagem e lhes servirá de pastor (Ez 34:11-12,23).
Jesus, ao vir ao mundo, se apresentou como o pastor prometido por Deus com todas suas características. Ele conhece e ama suas ovelhas; chama-as pelo nome; para ele não são um número, mas pessoas amigas. Ele as apascenta, as defende, dá-lhes – não tira – a vida; procura a que está perdida e a reconduz com festa ao rebanho; reúne as dispersas. Em outras palavras, é um pastor a serviço do rebanho, até ao ponto de dar por ele a vida: O bom pastor expõe a sua vida pelas ovelhas (Jo 10,11). Ele é a antítese perfeita entre o chefe e o líder humano: não seja assim entre vós: mas quem manda seja o servidor de todos (cf Jo 13,13s); Assim como o Filho do Homem veio, não para ser servido, mas para servir (Mt 20,28), isto é, eu vim não para me fazer apascentar, mas para apascentar. Por isso, a figura do bom-pastor é completada, em João, por aquela do Cordeiro que dá a vida para tirar o pecado do mundo (cf Jo 1,29). O Cordeiro, que está no meio do trono, será o seu pastor e os levará às fontes das águas vivas (Ap 7,16). O que há de mais alheio ao poder do que um cordeiro?
Debaixo de um pastor desta natureza, não é humilhante ser uma ovelha, mas é salvação. Ele é o primeiro dos mártires vítima da prepotência. Foi ele também conduzido como ovelha ao matadouro, mas com seu martírio começou a mudança total dos valores e criou-se uma possibilidade nova nas relações humanas. Doravante, a verdadeira glória não consistirá em ser servidos e apascentados pelos súditos, mas antes em servi-los e nutri-los. Eis por que nós cristãos não temos nenhum complexo em ser e aceitar a alcunha de “o rebanho que ele apascenta”.
O homem de hoje rejeita indignado o papel de “ovelha”. Contudo, ele está plenamente dentro do esquema; sem que nos apercebamos, nós nos deixamos guiar inocentemente por qualquer tipo de manipulação e de persuasão oculta. Outros criam modelos de bem-estar e de comportamento, ideais e objetivos de progresso, e nós os seguimos; nós os seguimos com medo de ficar por fora, atordoados pela mídia; condicionados e plasmados pela publicidade; nós comemos o que nos propõe e vestimos como nos ensinam os outros.
Observem como caminha a vida da multidão de uma grande cidade moderna: é a imagem triste de um rebanho que sai junto, agita-se e se comprime, em horas fixas, nos meios de transporte quer dos ônibus, quer do metrô. Nutre-se das mesmas coisas confeccionadas pelos outros – tanto alimento como notícias – depois, à noite, volta junto com o rebanho vazio de si e de liberdade: Como as ovelhas saem do cercado […] e o que faz a primeira, as outras fazem … simples e quietas, e não sabem porquê
Dante Alighieri.
Cristo nos propõe fazer Ele uma experiência de libertação. Onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade (2Co 3:17), ali emerge a pessoa com a inigualável riqueza e com seu destino verdadeiro; emerge o filho(a) de Deus “ainda escondido”, do qual fala a apóstolo João em sua primeira epístola:
Vejam que grande amor o Pai nos tem concedido, a ponto de sermos chamados filhos de Deus; e, de fato, somos filhos de Deus. Por essa razão, o mundo não nos conhece, porque não o conheceu. Amados, agora somos filhos de Deus, mas ainda não se manifestou o que haveremos de ser. Sabemos que, quando ele se manifestar, seremos semelhantes a ele, porque haveremos de vê-lo como ele é
1Jo 3:1,2.
Por que há liberdade? Porque o Senhor não querendo violar nossa personalidade, a ajuda a crescer, a formar-se; Ele nos “personaliza” com seu conhecimento e com seu amor; faz nascer dentro de nós a nova criatura, consciente e forte, aquela que o mundo não pode manipular porque não está mais sobre seu domínio:
Aquele que me segue não andará em trevas, mas terá a luz da vida
Jo 8,12.
Quem caminha na luz sabe distinguir as coisas, os valores, sabe distinguir as sombras da realidade.
Esta meditação deve despertar em nós o sentido gostoso de nossa pertença a Cristo bom-pastor, a persuasão de ser por Ele conhecidos e amados; mas deve também despertar o empenho em não traí-Lo, para recair sobre outras pesadas submissões e escravidões. Jesus nos dá um sinal para reconhecermo-nos, para ver se estamos em seu rebanho:
As minhas ovelhas ouvem a minha voz, eu as conheço e elas me seguem
Jo 10:4,16.
Reconhecemos nós a voz de Cristo, também no meio dos mil apelos do mundo? Somos capazes de exultar ao som de Sua voz, também neste momento?
Aproximemo-nos da Eucaristia, da Santa Ceia do Senhor, que é o encontro real com o bom-pastor, humildes e confiantes renovemos a Cristo a nossa adesão com as palavras do salmista:
Quanto a nós, teu povo e ovelhas do teu pasto, para sempre te daremos graças; de geração em geração proclamaremos os teus louvores
Salmo 79,13.
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