Que tipo de vida o discípulo deve assumir no Mundo?
“É pela perseverança que vocês ganharão a sua alma” Evangelho Lucas 21:5-19
Lendo o contexto desse evangelho em destaque, que é uma parte dos famosos discursos escatológicos de Jesus, podemos interpretá-lo como anúncio de adversidades: aí se fala de guerras, revoluções, rebeliões, terremotos, privações e todo tipo de doenças. As dificuldades, infortúnios – de acordo com o que o evangelista Lucas diz à Igreja – continuarão a existir, porque fazem parte integral da história humana; não foi Jesus que as trouxe, o que o Senhor trouxe foi, antes, a possibilidade de vencê-las mediante a fé em seu nome: “Mesmo assim, cada detalhe do corpo e da alma de vocês — até os cabelos da cabeça! — está sob meu cuidado: nada irá se perder. Fiquem firmes, é a única exigência. Fiquem firmes até o fim. Vocês não vão se arrepender, pois serão salvos”. Lucas 21:18,19 (A Mensagem).
Não podemos porém, desconhecer que, apesar de todo o esforço de Lucas para tornar menos dramático e mais coerente com a situação da Igreja de seu tempo o discurso de Jesus, este nos põe diante de uma verdade muito austera: não ficará pedra sobre pedra. Não só do templo de Jerusalém, mas nem sequer daquele edifício maior que é a máquina do mundo: Porque a aparência deste mundo passa, foi a conclusão a que chegou o apóstolo Paulo com estes discursos (cf 1Co 7,31). A vida do discípulo no mundo assume, de repente, um aspecto novo: é vida de espera, por isso de vigilância; é vida de peregrinos a caminho, não de domiciliados e de sedentários.
O que fazer então? Parece que uma das primeiras comunidades cristãs, a de Tessalônica, existiram cristãos que tiravam desse pensamento uma consequência imediata: inútil esforçar-se, inútil trabalhar e produzir, tudo é passageiro; melhor viver o dia a dia, sem assumir compromissos a longo prazo, quem sabe recorrendo a expedientes, se necessário, para viver. A estes responde o apóstolo Paulo: Pois, de fato, ouvimos que há entre vocês algumas pessoas que vivem de forma desordenada. Não trabalham, mas se intrometem na vida dos outros. A essas pessoas determinamos e exortamos, no Senhor Jesus Cristo, que se dediquem tranquilamente, e trabalhem para obter o próprio sustento (cf 2Ts 3:7-12). No início do texto em destaque, São Paulo lembra seu exemplo pessoal, dizendo não ter comido ociosamente seu pão, mas ter trabalhado dia e noite, e com fadiga, para não ser peso a ninguém.
A primeira página da Bíblia apresenta o próprio Deus como modelo de trabalho: Deus trabalha seis dias e descansa no sétimo, estabelecendo assim – entende-se simbolicamente – as leis e o tempo de trabalho e de descanso, tudo isto antes que houvesse o pecado; o trabalho, portanto, faz parte da natureza, não do castigo do homem; do castigo fazem parte, quem sabe, a fadiga e a pena. O trabalho manual é tão digno quanto o intelectual e espiritual. Jesus Cristo dedica uns vinte anos ao primeiro (supondo que tenha começado a trabalhar com 13 anos) e somente um par de anos ao segundo, que ele chama, significativamente, de “o trabalho” que o Pai lhe havia confiado para cumprir no mundo (cf Jo 4,34; 6,29; 17,4).
Os evangelhos nos revelam que Jesus, depois de sua manifestação no Templo entre os doutores, voltou à vida normal em Nazaré, sendo submisso a José e a Maria (cf Lc 2:51,52), não porque Ele precisasse se submeter, mas porque Deus queria que Ele se submetesse. Jesus, com seus trinta anos de submissão aos pais —, deu mais glória a Deus do que com o seu período de três anos de vida pública. Por quê? Porque a glória de Deus aumenta com o amor. Então, foram trinta anos de amorosa submissão, de amorosa conformidade à vontade de Deus, de amoroso escondimento de Jesus. Ora, nesta vida singela e oculta, era necessário que Jesus em tudo se comportasse como o filho do carpinteiro, de tal forma que, depois, quando Ele começar a vida pública, todos ficarão espantados: “Mas não é este o filho do carpinteiro?”, como se dissessem: “Não é este aquele que obedeceu aos pais durante trinta anos? Como é que agora os espíritos imundos, o mar e as outras criaturas lhe obedecem?” Tal espanto resulta desta humildade, deste amor de Jesus, submetendo-se aos seus pais. Jesus, é evidente, pois nunca deixou de ser Deus, desde o ventre da Virgem Maria sabia o que veio fazer: pensava em nós e nos amava, a cada segundo. Deus deu essa graça a Jesus, porque Ele veio para nos amar. Quando Jesus, em Nazaré, enfrentou o cansaço e os suores da carpintaria; quando Jesus, em Nazaré, se submeteu a José e à sua Mãe, Ele pensava em nós e nos amava com amor particular…
Para imitar Cristo, que trabalhou como artesão a maior parte de sua vida, longe de descuidar das tarefas temporais, os cristãos estão mais obrigados a cumpri-los, por causa da própria fé, de acordo com a vocação a que cada um foi chamado. Assim deve ser a nossa atuação no meio do mundo: olhar frequentemente para o Céu, para a Pátria definitiva, mas ter ao mesmo tempo os pés assentados sobre a terra, trabalhar com intensidade para dar glória a Deus, atender o melhor possível às necessidades da família e servir a sociedade a que pertencemos. Sem um trabalho sério, feito com consciência, é muito difícil, para não dizer impossível, santificar-se no meio do mundo.
Esse estilo de vida só será possível se nossa motivação no trabalho secular e ministerial estiver associada à nossa identidade – como bem exortou um dos Pais da Igreja, São Leão Magno: “Cristão, reconhece a tua dignidade. Por participares agora da natureza divina, não te degeneres, retornando à decadência de tua vida passada. Lembra-te da Cabeça a que pertences e do corpo de que és membro. Lembra-te de que foste arrancado do poder das trevas e transferido para a luz e o Reino de Deus”. Jesus Cristo sempre fez o que era do agrado do Pai. Sempre viveu em perfeita comunhão com Ele. Também os discípulos são convidados a viver sob o olhar do Pai, “que vê no escondido” (Mt 6,6), para se tornarem “perfeitos como o […] Pai celeste é perfeito (Mt 5,48).
Então, o trabalho é um meio necessário que Deus nos confia aqui na terra, dilatando os nossos dias e fazendo-nos participar de seu poder criador, para que ganhemos o nosso sustento e simultaneamente colhamos frutos para a vida eterna (Jo 4,36). O trabalho é o meio ordinário de subsistência e o campo privilegiado para o desenvolvimento das virtudes humanas… comportando-nos como filhos de Deus, viver um espírito generoso, de convivência pacífica, de compreensão, a tirar da vida o apego à nossa comodidade, a tentação do egoísmo, a tendência para exaltação pessoal, a mostrar o amor de Cristo e seus resultados concretos de amizade, de afeto humano, de reconciliação, de paz. De outro modo, a preguiça, a ociosidade, o trabalho mal feito trazem graves consequências. A inércia, a apatia, ensina muitas maldades, pois impede a perfeição humana e sobrenatural do homem, debilita o caráter e abre as portas à concupiscência (apetites desordenados) e a muitas tentações.
O trabalho não só não nos deve afastar do nosso último fim, dessa espera vigilante, de nos manter em estado de alerta, como deve ser o caminho para crescermos na vida cristã.
Para isso, o cristão fiel não deve esquecer que, além de ser cidadão da terra, também o é do Céu, e por isso deve comportar-se entre os outros de uma maneira digna da vocação a que foi chamado, sempre alegre, irrepreensível e simples, compreensivo com todos, bom trabalhador e bom amigo, aberto a todas as realidades autenticamente humanas. Quanto ao mais, irmãos – exortava São Paulo – tudo o que é verdadeiro, tudo o que é honesto, tudo o que é justo, tudo o que é santo, tudo o que é amável, tudo o que é de bom nome, qualquer virtude, qualquer coisa digna de louvor seja isso o objeto dos vossos pensamentos (Fp 4,8).
Além disso, o cristão converte o seu trabalho em oração se procura a glória de Deus e o bem dos homens naquilo que se realiza, se pede ajuda ao Senhor ao começar sua tarefa e nas dificuldades que surgem, se lhe dá graças depois de concluir um assunto, ao terminar a jornada …, para que as nossas orações e trabalhos sempre comecem e acabem em Deus. O trabalho é o caminho diário para o Senhor. “Por isso, o homem não deve se limitar a fazer coisas, a construir objetos. O trabalho nasce do amor, manifesta o amor, orienta-se para o amor. Reconhecemos Deus não apenas no espetáculo da natureza, mas também na experiência do nosso próprio trabalho, do nosso esforço. O trabalho é assim oração, ação de graças, porque nos sabemos colocados na terra por Deus, amados por Ele, herdeiros das suas promessas” (Josemaria Escrivá).
A profissão, meio de santidade para o cristão, é também fonte de graças para toda a Igreja, pois juntos todos vocês são o Corpo de Cristo, e cada um é uma parte dele (cf 1Co 12,27). Quando alguém luta com espírito cristão por melhorar no seu trabalho, beneficia todos os membros do Corpo Místico na sua caminhada para o Senhor. “O suor e a fadiga, que o trabalho acarreta necessariamente na atual condição da humanidade, oferecem ao cristão e a cada homem, que foi chamado a seguir a Cristo, a possibilidade de participar no amor à obra que Cristo veio realizar (cf Jo 17,4). Esta obra de salvação realizou-se através do sofrimento e da morte na Cruz. Suportando a fadiga do trabalho em união com Cristo crucificado por nós, o homem colabora de certa maneira com o Filho de Deus na redenção da humanidade. Mostra-se verdadeiro discípulo de Jesus levando por sua vez a cruz de cada dia (cf Lc 9,23) na atividade que foi chamado a realizar” (Encíclica Laborem Exercens, João Paulo II).
- Hoje em dia todos admitem a necessidade e a dignidade do trabalho, tanto manual como intelectual. Mas é diferente o juízo que se dá do trabalho em si e da sua incidência na vida do homem. Para Karl Marx o trabalho é essencialmente alienação. Trabalhando, o homem se objetiva no produto, se muda nele (visto que sua essência se reduz a ser uma força-trabalho); e na medida em que, na atual sociedade, o fruto do trabalho é tirado do trabalhador, é sua própria realidade que lhe é subtraída; ele se encontra enfraquecido e por isso alienado.
Mas a visão que a Igreja tem do trabalho é bem diferente da de Marx e isto porque ela possui uma concepção diferente do homem: não uma força-trabalho, mas um filho de Deus destinado a uma realização eterna que não se aliena com o trabalho, mas se realiza porque suas obras o seguem (cf Ap 14,13). Este trabalho, com efeito, quer empreendido por conta própria, quer contratado por outro, decorre imediatamente da pessoa, assinalando com sua marca as coisas da natureza e submetendo-as à sua vontade. Com o seu trabalho o homem sustenta regularmente a própria vida e a dos seus, associa-se aos seus irmãos e os ajuda, pode exercer a generosidade e colaborar no aperfeiçoamento da criação divina. Bem mais ainda. Pelo trabalho oferecido a Deus, como já destacamos, nós cremos que o homem se associa à própria obra redentora de Jesus Cristo, que conferiu uma dignidade eminente ao trabalho, quando em Nazaré trabalhou com as próprias mãos. Segue-se daí, para cada um, o dever de trabalhar fielmente e também o direito ao trabalho. Compete, porém à sociedade, de sua parte, de acordo com as circunstâncias vigentes, ajudar os cidadãos para que eles possam encontrar ocasião de trabalho suficiente. Enfim, o trabalho deve ser remunerado de tal modo que se ofereça ao homem a possibilidade de manter dignamente a sua vida e a dos seus, sob o aspecto material, social, cultural e espiritual, considerando-se a tarefa e a produção de cada um, assim como as condições da empresa e o bem comum.
O trabalho, portanto, é participação na ação criadora de Deus e na ação redentora de Cristo e é realização do homem. Mas ele é também algo muito diverso: é fadiga, sofrimento, é fonte de conflitos; portanto, é problema. O trabalho vem carregado deste lado negativo de castigo na passagem de Gênesis 1 (Submetei a terra) a Gênesis 3 (Com o suor do teu rosto comerás o pão), isto é, logo após o pecado. A história de Caim e Abel é a narrativa trágica do primeiro conflito do trabalho; a Bíblia o faz entender claramente: Abel tornou-se pastor de ovelhas e Caim lavrador (Gn 4,2). Interesses contrastantes – os agricultores sempre foram inimigos naturais dos pastores; os pastores tem necessidade de espaços para apascentar os rebanhos; os agricultores precisam cercar os terrenos, manter afastados os animais das lavouras cultivadas. O primeiro homicídio amadureceu, portanto, num conflito de trabalho. É um símbolo. A Igreja entende que o que estraga as relações no trabalho e causa tantos males na sociedade (desigualdade, exploração, violência, etc) é o pecado do homem, não uma mítica vontade perversa da sociedade capitalista. Não só, entende-se, o pecado de Adão, mas o pecado em todas as formas, cuja raiz comum tem um nome bem preciso: EGOÍSMO.
Se o primeiro mal é a falta de trabalho, o segundo é o excesso de trabalho. Infelizmente, motivado por um salário insuficiente, por causa do número elevado de pessoas dependentes, e principalmente por uma cultura que associa satisfação ao consumo de bens e serviços. Então o trabalho é elevado a ídolo da vida, do trabalho que ocupou todos os dias, e não poupou sequer o domingo. O trabalho que vira obsessão, que não permite ficar com a família – de verdade, não só fisicamente – com o cônjuge e com os filhos, para cultivar algum interesse cultural que ajude a viver mais conscientemente e a ser mais pessoa. Quantos matrimônios estéreis por causa deste ídolo do trabalho, que é enfim, ainda e sempre, o ídolo do dinheiro. A estes é preciso dizer a linguagem de Jesus: o trabalho é para o homem, não o homem para o trabalho! O que adianta acumular, ganhar até o “mundo inteiro”? Não ficará pedra sobre pedra, não ficará dinheiro sobre dinheiro. Além do mais, trabalhar mais do que o necessário, fazer dois trabalhos, fazer horas extras continuamente, assumir sempre novos compromissos, reuniões, mais clientes, tudo isso significa privar outros de emprego, criar desemprego, ser ladrões da mercadoria mais delicada e nevrálgica da sociedade: o trabalho.
É preciso desapegar o coração e as mãos do trabalho para não se tornar escravos; é preciso ter a força e a sabedoria de dizer a si mesmos: “Agora basta!”. O que ganho é suficiente para as atuais necessidades de minha família e tem possibilidade de garantir uma discreta segurança para o futuro; minha família tem necessidade de mim, antes do meu dinheiro; e sobretudo, eu tenho necessidade de Deus; não posso me igualar a um animal de carga que não sabe orar nem pensar; o próprio Deus me proíbe, Ele que instituiu a lei do trabalho, mas também a lei do descanso: Seis dias você trabalhará e fará toda a sua obra, mas o sétimo dia é o sábado dedicado ao Senhor, seu Deus. Não faça nenhum trabalho nesse dia, nem você, nem o seu filho, nem a sua filha, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu animal, nem o estrangeiro das suas portas para dentro (Ex 20,9-10). Os filhos exijam dos pais este repouso; façam entender ao pai – o qual erra muitas vezes por um amor equivocado pelos filhos – que precisam de outras coisas além do dinheiro.
Cabe a cada um de nós, discípulos de Jesus, vigiar com nossas motivações mantendo o olhar na eternidade: no dia do juízo, porém, o fogo revelará que tipo de obra cada construtor realizou, e o fogo mostrará se a obra tem algum valor (1Co 3,13). Comece fazendo um exame prático sobre o que é ouro e o que é palha nas suas virtudes. Vejamos. Como é que responderia às seguintes perguntas:
Como anda a sua fortaleza? Você acha que enfrenta os deveres e as dificuldades com o ouro da coragem? Ou fica com a palha da queixa e da reclamação? Sofre-as com a elegância do topázio e com a firmeza do diamante, ou quando aparece a dor ou os problemas a sua alma se racha como uma madeira carcomida? Você tem a prata da lei da paciência, ou o feno combustível da irritação e o desânimo perante as contrariedades?
A quantas anda sua temperança? É o ouro da moderação no ter, no comer, no entreter, da capacidade de dizer não à gula, à tirania da imaginação, da sensualidade, dos estados de humor, da prolixidade (tagarelice) … Ou então é a palha do excesso num estilo de vida materialista, na obsessão mórbida (nociva) pelo sexo, da preguiça e o desleixo no trabalho, das distrações constantes unidas a perdas de tempo, da moleza para acordar na hora certa, da autocompaixão …
E o que dizer da justiça? Cristo vai dizer que você viveu a justiça? Não acha que talvez lhe diga que acumulou muita palha combustível: maus juízos sobre os outros, difamações e calúnias; competitividade desleal no trabalho, prejuízos causados por irresponsabilidade no cumprimento do dever, por falhar à palavra dada, por enganar nas transações, por não colaborar em nada para que cessem as injustiças sociais … Pensando no ouro, convido-o desde já a ser mais justo com Deus (honrá-lo, agradecer-lhe, obedecer-lhe, seguir os seus Mandamentos …); a ser exemplar e generoso no cumprimento dos deveres familiares, profissionais e sociais; a tratar com igualdade todas as pessoas, sem admitir discriminações; a não se deixar arrastar por preconceitos ou por preferências inju8stas …
Como vê, há muito “material de construção” a “adquirir” e muito a “descartar”. Não permita que o dia do Juízo o encontre como aquele pobre homem que provocava o riso dos outros: Esse homem começou a construir, mas não conseguiu terminar! (Lucas 14,30).