Vamos refletir sobre a fé em Cristo. Com o Senhor podemos tudo; sem Ele somos incapazes de tomar sequer uma decisão segundo a vontade de Deus Pai. Vamos notar que quando a fé se torna pequena, as dificuldades agigantam-se; e que nesses momentos Jesus sempre ajuda.

Logo em seguida, Jesus insistiu com seus discípulos que voltassem ao barco e atravessassem até o outro lado do mar, enquanto ele despedia as multidões. Depois de mandá-las para casa, Jesus subiu sozinho ao monte a fim de orar. Quando anoiteceu, ele ainda estava ali, sozinho.

Mateus 14:22,23

Nesse trecho do Evangelho, o evangelista Mateus nos faz desfilar diante dos olhos uma série movimentada de painéis: Jesus que obriga os discípulos a subir na barca e dirigir-se para águas mais profundas; depois, Jesus que se dirige às multidões e as despede; Jesus que, ao cair da tarde, sobe a encosta e, sozinho, imerge na oração; depois o resgate de Pedro e a bonança.

A comunidade primitiva conservou a lembrança daquela noite memorável dos prodígios, porque nela via traçada, numa espécie de parábola, a própria situação no mundo. Em outras palavras, aquilo que aconteceu a Pedro e aos outros apóstolos sobre o lago de Tiberíades não foi visto como um episódio apenas, para ser recordado como um grandioso milagre e basta. Quando Mateus escrevia seu Evangelho, Jesus não estava mais sobre essa terra; tinha, por assim dizer, se despedido das multidões e tinha impelido a barquinha de sua igreja, com Pedro no leme, sobre as ondas, para que iniciasse, sem ele, a travessia do grande mar da história. A Igreja, porém, não tinha caminhado muito nesta nova situação – apenas alguns anos – e já se levantavam os primeiros vagalhões da perseguição. Antes de tudo, em Jerusalém, os discípulos são presos; Estevão é morto; a Igreja é obrigada a se dispersar pela Palestina. Depois, outros vagalhões mais ameaçadores: em Roma, Nero começa a perseguir em massa os discípulos de Jesus. Assim, a Igreja vive agora esta situação de vento contrário e de medo. É a situação que encontramos refletida em muitas páginas do Novo Testamento, escritas, precisamente, neste contexto: Caríssimos – escreve o apóstolo Pedro às Igrejas – não vos perturbeis no fogo da provação, como se vos acontecesse alguma coisa extraordinária (1Pe 4,12); Resisti-lhe fortes na fé. Vós sabeis que os vossos irmãos, que estão espalhados pelo mundo, sofrem os mesmos padecimentos que vós (1Pe 5,9).

Quando, em situações como esta, a comunidade ouvia a narração evangélica de Mateus, tirava sobretudo uma conclusão: o Mestre não está longe nem agora; não nos deixará a sós lutando com as ondas; basta invocá-lo que ele descerá do monte e virá em socorro de sua Igreja. Esta confiança se baseava no fato de que ele tinha ressuscitado e estava vivo. Os antigos sacerdotes colocavam em evidência uma coincidência: Jesus vai ao encontro dos apóstolos no lago “na quarta vigília da noite”, isto é, na mesma hora em que ressuscitou dos mortos.

Nesta situação, uma coisa é necessária para não afundar: não perder a confiança, não desanimar no meio das dificuldades, não olhar para baixo ou ao redor, para as ondas que se agitam, mas à frente, para Cristo. Somente quem vacila na fé, ou quem confia nas próprias forças, afunda. Pedro fizera disso uma segunda experiência amarga, semelhante à do lago de Tiberíades, e tinha obrigado seu evangelista Marcos a registrar o fato para que servisse de exemplo para todos. Também se todos te abandonarem – tinha dito – eu não o farei (cf. Mc 14,29); mas depois, no átrio, foi surpreendido de novo pelo medo como no lago e o renegou:  Não conheço esse homem de quem falais (Mc 14,71).

O desfecho do trecho evangélico traçava para a Igreja um modelo concreto: permanecer na barca e proclamar junto com os apóstolos a fé que salva. Tu és verdadeiramente o Filho de Deus.

Até aqui, pode-se dizer, a leitura de nosso Evangelho feita com os olhos da primeira Igreja. Mas e hoje? O que podemos ler nós cristãos nascidos tantos séculos depois? Talvez as mesmas e idênticas coisas que descobriram os primeiros cristãos. Mudaram o cenário, a dimensão do lago e da barca; o lago é agora a terra inteira; a barca é a Igreja espalhada por todo o mundo. Mas as dificuldades são as mesmas e também as escolhas a ser feitas.

Talvez haja um detalhe a ser meditado mais atentamente. Jesus veio quando a noite ia pelo fim, não antes; veio quando a provação estava chegando ao auge, assim como o cansaço; quando tudo indicava que se devia resolver com as próprias forças, isso havia bastado para criar uma enorme distância dele.

Mas não é um pouco nosso estado de ânimo hoje? Alguém chegou a dizer até que é bom que seja assim; que devemos nos habituar a ir em frente “como se Deus não existisse” (D. Bonhoeffer), manobrando sozinhos os remos na água, no silêncio e na escuridão da noite. Porque a fé verdadeira, se diz, é aquela que se vive assim; aquela que não reduz Deus a um tapa-buracos e não lhe pede para fazer-nos caminhar sobre as águas da vida sem molhar os pés.

Será verdadeiro também isto, mas o Evangelho não parece nos pedir tanto. Parece antes nos exortar a nos dirigir a ele, a orar e a implorá-lo: Mestre, não te importas que pereçamos? (Mc 4,38). E implorá-lo não por nós, entenda-se, mas por todos os que estão na barca, pela Igreja, a fim de que, depois de reconquistada a calma, ela possa proclamar ao mundo sua fé: Tu és verdadeiramente o Filho de Deus.

Quando a fé se torna pequena, as dificuldades agigantam-se: a fé viva depende da capacidade que eu tenha de responder afirmativamente esse Deus que me chama e quer tratar-me e ser meu amigo, a grande companhia da minha vida. Portanto, se eu lhe digo “sim, aqui estou […], se passo a viver ao seu lado, fortaleço a minha fé, porque minha fé alicerça-se em Deus. Pelo contrário, se me distancio de Deus, se o esqueço, se o empurro para a periferia da minha vida, e esta submerge naquilo que é puramente material e humano; se me deixo arrastar pelas evidências imediatas e Deus se desvanece da minha alma, como posso ter uma fé viva? Se não procuro o trato íntimo com Cristo, o que é que resta da minha fé? Por isso temos de concluir que, em última instância, todos os obstáculos à vida de fé se reduzem na sua gênese a um afastamento de Deus, a um separar-se de Deus, a um deixar de conviver com Ele num trato face a face.

Pedro teria continuado a caminhar firmemente sobre as águas e teria chegado até o Senhor se não tivesse afastado dEle o seu olhar confiante. Mas, redobrando a violência do vento, teve medo e [começou] a afundar. (São Mateus 14,30)

Por fim, clamou ao Senhor por ajuda: Senhor, salva-me! No mesmo instante, Jesus estendeu-lhe a mão, segurou-o e lhe disse: Homem de pouca fé, por que duvidaste? (São Mateus 14,30-31) Primeiro veio a libertação, depois a repreensão — e provavelmente com um sorriso no rosto e amor na voz. Esta não foi a única vez que o pobre Pedro duvidaria do Mestre a quem tanto amava. Aquele que pediu para caminhar sobre as águas a fim de aproximar-se logo do Senhor foi o mesmo que mais tarde juraria estar pronto para ir à prisão ou até mesmo para ser morto pelo mestre. Corajoso no bote, mas tímido nas águas, mais tarde seria valente na Última Ceia, mas covarde na noite do julgamento. A cena no lago era um ensaio da outra queda de Pedro.

O povo ainda estava propenso a proclamar Nosso Senhor rei quando O encontraram no dia seguinte em Cafarnaum. À pergunta deles sobre como chegara lá, a resposta foi uma reprimenda aos que pensavam que a religião tinha relação sobretudo com o pão e com a distribuição de sopa aos pobres. Em verdade, em verdade vos digo: buscais-me, não porque vistes os milagres, mas porque comestes dos pães e ficastes fartos. (São João 6,26) Não tinham compreendido o milagre como sinal de Sua divindade; procuravam-No, mas não O viam. Jó O viu em sua perda assim como em seu ganho; eles O viam apenas como um meio de saciar a fome de pão, não a fome de alma.

Empolgação não é religião; se fosse, um “aleluia” no domingo poderia tornar-se um “crucifica” na sexta-feira. Disse-lhes então Nosso Senhor: Trabalhai, não pela comida que perece, mas pela que dura até a vida eterna, que o Filho do Homem vos dará. Pois nele Deus Pai imprimiu o seu sinal. (São João 6,27) O Senhor estava colocando diante deles dois tipos de pão: o que perece e o que dura até a vida eterna. Advertiu-os contra a ideia de segui-Lo como um jumento segue o senhor que segura uma cenoura. Para elevar as mentes carnais até o Alimento Eterno, sugeriu que buscassem o Pão Celestial em que o Pai imprimiu o seu sinal. O pão oriental geralmente era assinalado com a marca oficial ou o nome do padeiro. De fato, a palavra talmúdica para “padeiro” está relacionada à palavra “selo”. O Nosso Senhor estava insinuando que o pão que deviam buscar era o pão confirmado pelo Pai, portanto, Ele mesmo.

Queriam uma prova de que o Pai O tinha autorizado; deu pão, sim, mas isso não era grandioso o bastante. Afinal, Moisés não tinha dado o alimento do céu? O argumento deles era: que prova tinham de que Jesus era maior que Moisés? Assim, minimizaram o milagre do dia anterior, comparando-o a Moisés, e o pão que Jesus deu ao maná do deserto. Nosso Senhor tinha alimentado a multidão apenas uma vez, e Moisés os alimentara por quarenta anos. No deserto as pessoas sempre chamaram o pão “maná”, que quer dizer “O que é isso?”. Entretanto, numa ocasião, quando menosprezaram o maná, chamaram-no “alimento miserável” (Números 21,5). Assim também agora desdenhavam dessa dádiva. Nosso Senhor aceitou o desafio; disse que o maná recebido de Moisés não era o Pão Celestial, nem tinha vindo do céu; ademais, nutria apenas uma nação e por tempo limitado. Mais importante ainda, não era Moisés quem dava o maná; era o Pai; por fim, o Pão que Ele daria duraria para a vida eterna. Quando lhes disse que o verdadeiro Pão desceu do céu, os homens pediram:

Senhor, dá-nos sempre deste pão! E o Mestre respondeu: Eu sou o pão da vida. (São João 6,35) Essa foi a terceira vez que Nosso Bendito Senhor usou um exemplo do Antigo Testamento para simbolizar a Si mesmo. A primeira foi quando Se comparou com a escada que Jacó viu, revelando-Se assim como um mediador entre o céu e a terra (São João 1,51). No discurso a Nicodemos, comparou-Se à serpente de bronze, que curaria os feridos pelo pecado e o mundo envenenado (São João 3,14). Agora, referia-Se ao maná do deserto, e declarava que Ele era o verdadeiro Pão de que o maná tinha sido apenas uma prefiguração. E diria ainda: Eu sou a luz do mundo. (São João 8,12); Eu sou a porta. (São João 10,7-9); Eu sou o bom pastor; (São João 10,11-14); Eu sou a Ressurreição e a Vida (São João 11,25); Eu sou o caminho, a verdade e a vida (São João 14,6); Eu sou a videira verdadeira (São João 11,25). E se declara três vezes: O pão da vida. (São João 6,35-41.48-51)

Mais uma vez, Ele faz a sombra da Cruz aparecer. O pão deve ser partido; e Aquele que vinha de Deus havia de ser uma vítima sacrificial para que os homens pudessem verdadeiramente alimentar-se Dele. Assim, seria um Pão que resultaria da oferta voluntária da própria carne para resgatar o mundo da servidão do pecado para a novidade da vida. E o pão, que eu hei de dar, é a minha carne para a salvação do mundo. A essas palavras, os judeus começaram a discutir, dizendo: Como pode este homem dar-nos de comer a sua carne? Então Jesus lhes disse: Em verdade, em verdade vos digo: se não comerdes a carne do Filho do Homem, e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós mesmos. (São João 6,51-53)

Jesus não só Se denominou como aquele que descera do céu, mas como aquele que tinha descido para dar-Se, ou morrer. Somente quando Cristo fosse morto chegariam a compreender a glória do Pão que alimenta para a eternidade. Aqui, Ele estava referindo-se a Sua morte; pois a palavra “dar” expressava o ato sacrificial. A carne e o sangue do Filho de Deus Encarnado, que seria servida na morte, tornar-se-ia a fonte da vida eterna. Quando disse “minha carne”, queria dizer que o Verbo de Deus, ou o Filho, havia assumido uma natureza humana. Contudo, somente porque essa natureza humana estaria ligada à Personalidade Divina por toda a eternidade é que Ele podia dar vida eterna àqueles que a receberam. E quando disse que daria Sua carne pela vida do mundo, a palavra grega usada queria dizer “toda a humanidade”.

Suas palavras tornaram-se mais pungentes porque esta era a época da Páscoa. Embora vissem o sangue de um modo terrível, os judeus estavam naquela época levando seus cordeiros a Jerusalém, onde o sangue seria derramado às quatro direções da terra. A estranheza da declaração acerca de dar Seu corpo e sangue diminui em contraste com o pano de fundo da Páscoa; Jesus queria dizer que a sombra do cordeiro animal estava passando e que seu lugar seria assumido pelo verdadeiro Cordeiro de Deus. Assim como tinham comunhão com a carne e o sangue do cordeiro pascal, também teriam agora comunhão com a carne e o sangue do verdadeiro Cordeiro de Deus.

Aquele que nasceu em Belém, a “casa do pão”, e foi posto em uma manjedoura, um lugar para alimentar animais, seria agora, para os homens, tão inferiores a Ele, o Pão da Vida. Tudo na natureza tem de ter comunhão para viver; por meio dela, o que é inferior se transforma no que é superior: os elementos químicos em plantas, as plantas em animais, os animais no homem. E o homem? Ele não deve elevar-se pela comunhão com Aquele que “desceu” do céu para tornar o homem um participante da natureza divina? Como mediador entre Deus e o homem, Jesus disse que, assim como Ele vivia pelo Pai, assim também deviam viver por Ele: Assim como o Pai que me enviou vive, e eu vivo pelo Pai, assim também aquele que comer a minha carne viverá por mim. (São João 6,57)

Quão carnal era comer do maná, e quão espiritual era comer da carne de Cristo! Era muito mais íntima a vida que vinha por meio Dele do que a do bebê alimentado pela mãe. Toda mãe de criança de colo pode dizer “Coma, este é meu corpo; este é meu sangue”. Entretanto, na verdade, a comparação termina aí; pois, na relação mãe-filho, ambos estão no mesmo nível. Na relação Cristo-humanidade, a diferença é aquela de Deus e homem, céu e terra. Além disso, nenhuma mãe jamais teve de morrer e assumir uma existência gloriosa em sua natureza humana antes que pudesse alimentar seu rebento. Nosso Senhor, contudo, disse que teria de “dar” a vida antes que fosse o Pão da Vida dos crentes. As plantas que alimentam os animais não vivem em outro planeta; os animais que alimentam os homens, não vivem em outro mundo. Se Cristo, então, tinha de ser a “vida do mundo”, tinha de fazer morada entre os homens como Emanuel ou “Deus conosco”, suprindo a vida da alma assim como o pão terreno é a vida do corpo.

No entanto, a mente dos ouvintes não se elevou mais alto que o físico, pois perguntaram: Como este homem pode dar-nos Sua carne para comer? Era loucura para qualquer homem oferecer sua carne para ser comida. Contudo, não foram deixados no escuro por muito tempo, pois Nosso Senhor os corrigiu, dizendo que não seria um mero homem, mas “o Filho do Homem” quem a daria. Como de costume, esse título referia-se ao sacrifício expiatório que Ele haveria de oferecer. Não era o Cristo morto quem alimentaria os discípulos, mas o Cristo glorificado nos céus, que morreu, ressurgiu dos mortos e ascendeu aos céus. O mero alimento da carne e do sangue de um homem de nada serviria; mas a Carne e o Sangue glorificados do Filho do Homem renderiam a vida eterna. Assim como o homem morreu espiritualmente ao comer fisicamente no Jardim do Éden, também voltaria a viver espiritualmente ao comer do fruto da Árvore da Vida.

O significado pleno dessas palavras não fica evidente até a noite anterior a Sua morte. No último desejo e testamento, deixou aquilo que, ao morrer, nenhum outro homem fora capaz de deixar, a saber, Seu corpo, sangue, alma e divindade, pela vida do mundo.

O Senhor tem sempre a mão estendida, para que nos agarremos a ela. Nunca permite que nos afundemos, se fazemos o pouco que está ao nosso alcance. Além disso, enviou o Espírito Santo para que nos ensine a viver a vida de Cristo em meio às adversidades, e seja uma ajuda poderosa no nosso caminho. Procuremos a sua amizade, recorramos a ele com frequência ao longo do dia, peçamos-lhe ajuda nas coisas grandes e pequenas e alcançaremos a fortaleza que necessitamos para vencer.