“Saia e ponha-se diante de mim no monte” 1 Reis 19,11a

Sabem o que aconteceu a este homem de Deus? Ele teve de falar com um rei para lhe chamar a atenção dos erros que este andava a cometer. E o rei não gostou. Então o rei e a esposa começaram a perseguir o Profeta e queriam matar-lhe. Elias fugiu e foi esconder-se numa caverna num monte onde Moisés já estivera com o Povo de Israel. Sabem o que o Profeta queria? Queria que Deus lhe desse a conhecer, tal como tinha feito com Moisés, qual era a sua vontade, o que é que ele devia dizer ao rei para que as coisas melhorassem. E Deus falou a Elias. Lembram-se do que Deus lhe disse? Disse-lhe: «Sai da caverna e fica no monte à espera». E ele fez como Deus mandou: ficou à espera.

Esperava que Deus se manifestasse de modo muito forte: ou numa grande ventania, ou num tremor de terra, ou num fogo, como fizera com Moisés. Mas Deus não quis manifestar-se assim. Como foi que Deus se manifestou? Manifestou-se sem ruído, num ar fresco, manso e suave. Que fez Elias, quando ouviu esse ar brando, essa brisa? Cobriu a cara e ficou à porta da caverna para descobrir, em silêncio, o que Deus lhe quisesse dizer.

Esta história de Elias, diz-nos que Deus fala ao coração, no silêncio, faz-nos sentir por dentro o que quer de nós, sem barulho e sem palavras. Precisamos de fazer silêncio no coração para sabermos o que quer Deus de cada um de nós.

Logo em seguida, Jesus insistiu com seus discípulos que voltassem ao barco e atravessassem até o outro lado do mar, enquanto ele despedia as multidões. Depois de mandá-las para casa, Jesus subiu sozinho ao monte a fim de orar. Quando anoiteceu, ele ainda estava ali, sozinho. Enquanto isso, os discípulos, distantes da terra firme, lutavam contra as ondas, pois um vento forte havia se levantado. Por volta das três da madrugada, Jesus foi até eles, caminhando sobre as águas. Mateus 14,22-25

O Evangelho em destaque, também nos fala do silêncio e do estrondo da tempestade. Diz-nos que Jesus «subiu a um monte para orar sozinho», sem os discípulos e sem a multidão que o seguia. Aí, no silêncio do coração, escutava o que Deus seu Pai tinha para lhe dizer. Os discípulos, porém, seguiam de barco, para a outra margem do lago de Tiberíades, e surgiu uma tempestade. Ficaram aflitos com a altura das ondas e o rugido das águas. Mas Jesus, que estivera em silêncio, coração a coração com seu Pai, foi ao encontro dos discípulos que estavam cheios de medo e acalmou a tempestade.

É oportuno esclarecer, antes de prosseguirmos nessa reflexão, que Jesus não se revela somente por palavras como se revelou, por exemplo, no sermão das parábolas (Mt 13); Ele se revela também por acontecimentos e gestos.

Exatamente aqui temos um acontecimento, e os gestos de Jesus querem nos revelar verdades importantes. Nesse sentido, se Jesus fez algo, é porque estava pensando em nós hoje. No Evangelho de hoje, há uma verdadeira lição para nós, que temos momentos de crise na vida pessoal; a própria Igreja passa por momentos de tormento, e Nosso Senhor quer nos iluminar para que, nos momentos de trevas e de noite escura, nós tenhamos a luz da fé, que realmente nos esclarece e torna firmes.

Então, o que Jesus nos está ensinando? A primeira coisa é notar que tanto o evangelho de Mateus como o de Marcos atestam que Jesus subiu a montanha para orar e manda ao barquinho os seus Apóstolos. Ou seja, Ele os manda a um ambiente absolutamente inóspito, que é o mar, como ovelhas no meio dos lobos.

O mar, na Bíblia, é sempre considerado um símbolo do mal e da maldade por causa da soberba de suas ondas e por ser um ambiente inseguro — digamos assim, agressivo —, perigoso. Não só isso: Ele os embarca — coloca-os na barca da Igreja — e lança o barco ao mar, mas o lança à noite.

Entre tantos horários que Jesus podia escolher para atravessar o mar, por que escolher a noite? E, ainda por cima, largar os Apóstolos sozinhos. Jesus põe os Apóstolos de noite no barco e vai orar. Além disso, as condições meteorológicas também não eram as mais favoráveis, pois “o vento era contrário”. É um cenário bem desfavorável; tudo está contra eles: o mar, a noite e o vento.

Mas, a primeira lição deste Evangelho é de que, quando vivemos momentos de crise, seja pessoal, seja numa fase da história da Igreja — porque a Igreja já viveu inúmeros momentos de crise —, temos uma certeza consoladora: é a certeza de que Jesus está no monte intercedendo por nós. Ele está no santuário celeste como sumo e eterno sacerdote, como diz a Carta aos Hebreus, intercedendo por nós.

Não é consolador saber disso? O evangelho de São Lucas narra um diálogo entre Jesus e São Pedro — o mesmo discípulo que hoje afunda nas águas. Jesus diz: “Pedro, Satanás pediu para te peneirar como trigo; eu, porém, intercedi por ti. Tu, quando voltares, confirma os teus irmãos”. Para ficar mais claro, poderíamos acrescentar: “confirma na fé os teus irmãos”. É muito interessante que Jesus tenha dito: “Eu intercedi por ti”. Quando olhou para o rosto de Pedro dizendo: “Eu intercedi por ti”, Ele estava pensando em você, estava pensando em cada um de nós. Quando disse a Pedro: “Satanás pediu para te peneirar como o trigo; eu, porém, intercedi por ti”, ele estava falando a nós hoje. Ele está intercedendo por você, para que resista no momento da provação e do desafio, que é exatamente o que os Apóstolos estão vivendo na travessia do mar.

Pois bem, o mar da história é um mar inóspito, que não nos dá muitas garantias, e no entanto, sabemos que Jesus ora por nós. No momento mais dramático, de mais dificuldade, por volta das três da manhã, quando as trevas são mais espessas e o vento é contrário, Jesus aparece.

O segundo ponto que se pode tirar em proveito da nossa vida espiritual é que essa aparição de Jesus (ou seja, a presença de Deus) não é, de início, consoladora. No meio do sofrimento, Deus não é necessariamente compreendido por seus amigos. Os evangelistas Mateus e Marcos apresentam Jesus como um “fantasma”, e a reação de medo é unânime. Os três evangelistas dizem que os discípulos reagiram com medo: “καὶ ἐφοβήθησαν [kai ephobēthēsan]”, diz São João. A realidade do φόβος [phóbos], do medo, está presente nos três evangelistas. Mateus e Marcos o interpretam como um fantasma: “φάντασμά ἐστιν [phántasma estin]”. Ou seja, não bastasse a situação complicada, Jesus aparece aos Apóstolos e é confundido com um espírito que vem do mundo dos mortos, do mundo infernal.

Essa realidade é importante por quê? Porque Jesus, caminhando sobre as águas, é a presença da Providência divina no meio de nossas crises.

Nos três evangelhos que citam o ocorrido, há uma uma citação literal do Antigo Testamento. Mateus, Marcos e João dizem que Jesus foi até os Apóstolos “caminhando sobre as águas”, “περιπατῶν ἐπὶ τὴν θάλασσαν [epitēn thalassan peripatōn]”. É uma citação literal de Jó 9,8. Nós sabemos de todo o sofrimento de Jó, figura clara do servo sofredor, portanto, figura de Cristo crucificado, mas também figura da Igreja unida ao seu divino Esposo na cruz da história e das crises.

No meio do sofrimento, Jó disse: “Eu não vou argumentar com Deus. Ele é sábio. Por mais argumentos que eu tenha, não adianta; foi Ele quem tudo fez”, então começa a falar a respeito da Providência divina e de sua presença na criação e na história; por fim, vem o versículo em que, referindo-se a Deus, Jó afirmou: “É ele quem caminha sobre as águas”, especificamente “sobre as ondas do mar”.

Isso corrobora e torna ainda mais concreto o fato de que nós podemos realmente ver que Jesus apareceu para nos dar uma lição; para, nos momentos de crise e de sofrimento de Jó, fazer compreender à Igreja que Ele está presente, ainda quando não saibamos que é Ele, ou quando a sua presença mais do que confortadora se torna assustadora.

Por quê? Porque, pelo pecado original, nós muitas vezes reagimos à presença de Deus com profundo medo, como Adão e Eva. Ao ouvirem os passos do Senhor que descera a passear na brisa da tarde, eles se esconderam atrás do arbusto, porque Deus se tornara um “adversário”, um “agressor”.

A atitude que Jesus pede de nós agora é a fé. Antes mesmo de os discípulos verem que era Ele, tendo uma experiência sensível de sua presença, Ele se revela pela palavra, dizendo: “Coragem, sou eu. Não tenham medo”. Esse “sou eu” está presente nos três evangelistas: “ἐγώ εἰμι [egō eimi]”. É a mesma palavra que Jesus usa constantemente no evangelho de São João para se identificar com a revelação do Antigo Testamento, no Êxodo, quando Deus se revelou na sarça ardente a Moisés: “Moisés, tira a sandália dos teus pés. Eu sou aquele que sou”; “ἐγώ εἰμι”, “eu sou”.

“Eu sou” quer dizer que Deus é a fonte do ser, a fonte de tudo o que acontece de bom; portanto, no meio da nossa miséria, existe um bem que não consegue ser tocado, que não consegue ser alterado por toda a maldade que nos rodeia. Não é consolador saber que, apesar de todas as tragédias que vivemos, existe um bem que permanece intocável? Imagine a pior de todas as tempestades, em condições atmosféricas apocalípticas. Você está diante de um tufão — furacão, granizo, uma coisa tremenda —, o sol desaparece, as nuvens negras se formam e, no meio dessas condições meteorológicas, nas quais tudo está sendo devastado e arruinado, você sabe perfeitamente que lá em cima o sol brilha, sem ser minimamente afetado pelas condições adversas.

Nessas situações, a primeira coisa que nós temos de compreender é que, claro, estamos vivendo uma tragédia. Mas, apesar disso, a fonte do ser e do amor, que é Deus, não será apagada! Ele está nos dizendo: “Sou eu, eu sou; eu estou aí, eu estou com vocês”. Ora, o mal e a maldade não são — não possuem ser; antes, são uma sombra que passa. O mal, por trágico que seja na nossa existência pessoal, é uma tolice que, mais cedo ou mais tarde, irá passar.

Se nós somos amigos de Deus, tudo — absolutamente tudo — contribui para o nosso bem (Cf. Rm 8, 28). Se nós estamos passando por provações, sabemos que existe um amor infinito, onipotente e inabalável que nos ama, que cuida de nós e que, se está permitindo um mal, é porque dele pode tirar um bem maior. Jesus está permitindo esse mal porque sabe que pode tirar dele um bem enormemente maior.

Essa frase: “Deus não permitiria o mal se desses males não pudesse tirar um bem maior”, diz Santo Agostinho, está arraigada no coração da Igreja. Não somente isso: é o que vemos na própria história de Jesus. Se ele abraçou a Cruz, é porque da Cruz viria a salvação. A Cruz de Cristo é salvífica; e também as nossas cruzes e as cruzes da Igreja podem ser salvíficas. Portanto, nestes momentos de crise e de trevas que vivemos, estamos diante de um instrumento de salvação.

“Portanto, quando todas essas coisas começarem a acontecer, levantem-se e ergam a cabeça, pois a sua salvação estará próxima” (Lc 21, 28). Mas, para isso, nós precisamos crer na sua Palavra, porque, antes de mostrar o seu rosto, Jesus fez os Apóstolos ouvirem a sua voz: “Não tenham medo; sou eu”; “ἐγώ εἰμι”, “eu sou”, “eu estou aqui”.

Pois bem, Jesus pede a nossa fé e diz: “Sou eu”. Mas não termina aí o nosso Evangelho. São Mateus nos brinda com o episódio do fracasso da fé de Pedro. Primeiro vemos Pedro começar na condicional: “Se és tu”, ou seja, o vemos ter uma fé condicional: “Se és tu, manda-me ir ao teu encontro caminhando sobre a água”. Jesus responde: “Vem”. Pedro desce da barca e começa a andar, mas fica com medo. Por quê? Porque viu vento, isto é, prestou atenção nele: “βλέπων δὲ τὸν ἄνεμον [blépōn de ton ánemon]”. (É claro, vento não se vê; mas, em todo caso, Pedro o viu: βλέπων, isto é, sentiu-o, percebeu-o)

O que interessa é que ele prestou atenção no vento. Ao invés de prestar atenção na voz de Jesus, que dizia “Não tenha medo; sou eu”, ele prestou atenção na maldade do vento e em seu próprio sofrimento. São os momentos de egoísmo em que você, como um animal, começa a lamber suas feridas de forma vitimista. Essa é uma das coisas importantes da vida espiritual: quem é realmente membro da Igreja ou se oferece com Cristo como vítima ou acaba caindo no vitimismo. Uma coisa é ser vítima salvadora em holocausto de amor, outra é ser vitimista e viver como um cachorrinho ferido, lambendo as próprias feridas. Pelo menos São Pedro soube orar, ou antes gritar: “Senhor, salva-me”, com confiança.

Sem Jesus, os discípulos tiveram medo; com Jesus, perdem o medo e sentem-se protegidos, porque Jesus acalma o mar e faz que os ventos fiquem em silêncio. Assim como Elias encontrou a Deus na brisa suave no alto do monte, assim Jesus se encontrou com o Pai no silêncio da montanha. Assim como os discípulos precisaram da presença de Jesus para vencerem os medos e as tempestades, assim nós, no silêncio do nosso coração, encontraremos a paz em Cristo que vem ao nosso encontro, dum modo especial hoje nessa leitura orante.

Portanto, como Igreja, intercedamos e peçamos a Deus que aumente a nossa fé. Jesus repreende Pedro e diz, segurando-o pela mão: “Homem de fé pequena” (ou “fraco na fé”; no original grego, “ὀλιγόπιστε”, “oligópiste”: “de fé pequena”). “Por que duvidaste?” Aumenta, Senhor, a nossa fé! Eis a lição que precisamos aprender nesta reflexão. No meio dos sofrimentos, Ele está conosco:  Ele é uma presença providente; Ele intercede por nós; e, portanto, creiamos na sua Palavra. Mesmo que a nossa fé não seja grande o suficiente, sejamos capazes de dizer: “Senhor, salva-me. Aumenta a minha fé”.