“Mas eles o convenceram a ficar, dizendo:

— Fique conosco, porque é tarde, e o dia já está chegando ao fim. E entrou para ficar com eles. E aconteceu que, quando estavam à mesa, ele pegou o pão e o abençoou; depois, partiu o pão e o deu a eles. Então os olhos deles se abriram, e eles reconheceram Jesus; mas ele desapareceu da presença deles. E disseram um ao outro:

— Não é verdade que o coração nos ardia no peito, quando ele nos falava pelo caminho, quando nos explicava as Escrituras? E, na mesma hora, levantando-se, voltaram para Jerusalém, onde acharam reunidos os onze e outros com eles, os quais diziam:

— De fato, o Senhor ressuscitou e já apareceu a Simão! Então os dois contaram o que lhes tinha acontecido no caminho e como tinham reconhecido o Senhor no partir do pão” (Lucas 24,29-35).

Os discípulos percorreram um caminho com Jesus; mas, enquanto o caminho de Jesus tem por objetivo final levar a cumprimento o desígnio salvífico do Pai, o caminho dos discípulos termina em decepção, tristeza e frustração; “esperávamos que ele (Jesus de Nazaré) fosse o libertador de Israel” (v.21); a vida, paixão, morte e ressurreição do Mestre ainda não são uma alternativa de caminho para os discípulos (vv. 19s 22-24). Este é o momento propício que o Ressuscitado aproveita para começar a retificar o caminho dos discípulos, e o faz a partir de dois elementos: o primeiro tem seu fundamento na Escritura, por isso parte dela e a explica ponto por ponto até que eles a entendam. O segundo elemento é a parte vivencial que Jesus já havia colocado em prática ao longo de sua vida ministerial e quis simbolizar com o gesto do compartilhar a mesa.

O episódio evangélico que Lucas nos contou, como sabemos, está ambientado na tarde de domingo do dia de Páscoa. Dois discípulos, decepcionados, estão voltando de Jerusalém para a sua vila natal. Jesus se coloca ao seu lado; fala-lhes de si e dos acontecimentos com ele ocorridos, através das Escrituras. Deverá ter-lhes explicado o significado profético do cordeiro pascal do Antigo Testamento, do servo de Javé e de outras figuras de sua paixão contidas nos salmos. Algo vai repercutindo dentro do coração dos dois discípulos ao som dessas palavras; é a fé que vai acordando pouco a pouco. Seu coração, com efeito, se inflama e dentro deles se reacende a esperança. Mas ainda não o reconhecem; veem “que as coisas correspondem ao que tinha dito as mulheres”, mas a Ele não veem.  Depois, à mesa, o reconhecem. Melhor, Jesus dá-se a conhecer mediante o gesto familiar ao qual havia ligado para sempre sua recordação: ao partir o pão.

O que nos diz a nós, discípulos de Jesus de hoje, esse episódio? É claro que o evangelista quis expressar com ele algo que vai além dos dois discípulos e interessa a toda a Igreja; de outra forma, não teria insistido sobre isso.

O que nos quer dizer é, antes de tudo, que Jesus está vivo, que ressuscitou e está presente no mundo. Sobretudo isto: que está presente em nosso mundo. Ele voltou ao Pai, está sentado à direita do Pai, vive intercedendo por nós junto ao Pai. Voltou, portanto, ao Pai, mas sem deixar a terra: Estarei convosco até o fim do mundo. O Jesus que caminha conversando com dois pobres homens na estrada de chão que vai de Jerusalém a Emaús é a expressão plástica de Jesus que caminha ao lado da humanidade inteira pelos caminhos do mundo, também se a humanidade está distraída, não pensa, fala do outro e não o reconhece.

“Por que o procurais entre os mortos?”, disseram os anjos às mulheres que tinham ido ao sepulcro; procurai-o entre os vivos. Jesus se encontra entre os vivos. No momento da Ascensão, a mesma advertência: “Homens da Galileia, por que estais olhando para o alto, encantados olhando para o céu? Aquele Jesus que viste subir ao céu, voltará”. E nós podemos acrescentar – à luz de todo o Novo Testamento – que está ainda entre nós; nunca se retirou totalmente. Poucos anos depois (aproximadamente cinco), aparecendo a Saulo Jesus dirá: “Saulo, Saulo, por que me persegues?”, confirmando, assim, que Ele realmente ficou aqui na terra, misteriosamente exposto ainda à perseguição dos homens.

Jesus está realmente entre nós. Mas isto será ainda inútil e vão se nós não nos dermos conta de sua presença, enquanto ficamos alheios a ele. “Tu estavas comigo” – dizia Agostinho, falando do tempo antes de sua conversão – mas eu não estava contigo (Confissões, X, 27). Esta era a situação daqueles dois discípulos: seus olhos, porém, estavam impedidos de reconhecê-lo. E esta é a situação de grande parte da humanidade atualmente. E sabemos também o que impede os homens de reconhecê-lo.
  • Todo lar tem um lugar de honra. Talvez seja o aparelho celular, onde se postam fotos da família ou belos passeios, pois embora presentes numa casa estão “no mundo da lua”. Também a televisão instalada na parede, como centro de entretenimento, ainda dominando a sala de forma ameaçadora; ou pior, quando cada um em seu cômodo assistindo seus programas, séries favoritas na TV, isolados, sem interação, sem nenhuma comunhão. Esses são os objetos que queremos ver e adorar todos os dias, as partes de nossas vidas que queremos que nossos convidados – cada vez mais virtuais – reconheçam e remetam a nós. 

Os espaços onde vivemos refletem nossos valores e prioridades; nós organizamos nossas vidas ao redor das coisas que são maximamente importantes para nós. Como para nossas casas, assim também para as nossas almas. Existe dentro da alma uma hierarquia divina esculpida em sua natureza mesma, mas também existe a hierarquia que nós impomos sobre ela – a hierarquia de valores implicada em nossos pensamentos, palavras e ações. A alma é criada com Deus no  lugar mais honroso, embora o pecado original obscureça essa verdade. No batismo, é-nos dada a graça de ordenar as nossas almas de acordo com a sua natureza, mas mesmo depois disso só podemos ver a sua ordem divina “como por espelho, obscuramente” (1Co 13,12).

Portanto, cabe a nós cooperar com a graça de Deus para fazer com que a nossa hierarquia esteja em sintonia com a dEle. Cabe a nós colocá-Lo em primeiro lugar em nossas casas e corações, porque, se não o fizermos, aquele lugar de honra não será deixado vazio. Ele será preenchido com outro objeto de culto, outro ídolo religioso – os deuses pagãos do sexo ou do dinheiro, que se “revela” naquela enorme televisão na parede ou aquele novíssimo aparelho celular de última geração. Não há como escapar: todos nós fazemos justiça a algo maior e mais importante do que nós mesmos.

Nós ouvimos e vemos o tempo inteiro, seja no culto, em livros ou mesmo na internet, que Deus é bom. Que Deus é amor. Que Deus é verdade. Que Deus é maravilhoso. E não só isso, ele é a fonte de todas as coisas boas que podemos imaginar. Essas afirmações são um legado que nos chegaram através do Credo Niceno (325 d.C), da Igreja militante daquela época em luta contra a cultura de então, que Ele é o Criador do Céu e da Terra. Aqui, temos dito que Ele não somente criou tudo quanto existe na existência; Ele é a própria existência.

Esses são todos bons conceitos, mas o que Ele realmente significa para nós? Sim, nós compreendemos que adoramos e cultuamos a Deus por sua bondade, verdade, poder e amor; é apenas justo e necessário que o façamos. Mas essas verdades sobre Deus também formam a ordem mesma do universo – o visível e o invisível, o natural e o sobrenatural. Esta ordem, ao menos em parte, assume a forma de hierarquia.

Isso faz perfeito sentido quando refletimos sobre todas as qualidades de Deus que há pouco discutimos. Se Deus é inteiramente bom, isso significa que a criação é boa – mas menos boa que o Criador, porque participa da bondade que vem, primeiramente, dEle. Portanto, só faz sentido que aqueles aspectos da criação que mais plenamente se assemelham ao Criador sejam melhores – isto é, que participem mais plenamente da bondade eterna e infinita do Criador – porque os seres humanos participam mais plenamente do amor, da verdade e da própria existência de Deus do que, por exemplo, uma rocha. Ou uma árvore. Ou mesmo o pet (animal doméstico) mais inteligente e carinhoso do mundo.

Esta hierarquia implica sujeição. A grama, em certo sentido, está sujeita ao boi. E o boi ao homem. E o homem a Deus. É assim que a vontade de Deus – a sua providência divina – permeia a sua criação. Ele não força o boi a comer a grama, mas criou o boi com uma natureza que come grama, à qual ele corresponde, cumprindo o seu dever pelo instinto. Dessa forma, o boi participa, sem precisar pensar nisto por um segundo que seja, da providência de Deus.

Os seres humanos são um caso especial. Nós participamos ainda mais plenamente do ser e da natureza de Deus em virtude de nosso livre-arbítrio – mas essa realidade acarreta uma responsabilidade avassaladora.

Nós somos os únicos seres criados, desde a rebelião dos anjos decaídos no princípio dos tempos, que podem escolher ir contra a vontade do Criador. Isso quer dizer que, embora tenhamos uma tarefa muito direta de comunicar a providência de Deus entre nós e para as ordens inferiores da criação, nós estamos livres para frustrá-la.

E, de fato, nós sempre a frustraremos, a não ser que confiemos totalmente na Sua graça, comunicada de modo especial através da Igreja. Desta forma, podemos trabalhar lado a lado com Cristo, trazendo a sua ordem e paz ao mundo.

Essas hierarquias do ser e do bem são simplesmente a realidade do universo, e serão refletidas, ou precisamente ou de modo distorcido e perverso, nas nossas almas. Não é possível viver sem hierarquia de valores, e não é possível ser indiferente à existência de Deus. A questão é se nossas almas estão em sintonia com a realidade ou em guerra contra ela.

O fracasso em reconhecer a ordem divina não a invalida nem a extermina. A hierarquia cósmica do ser não cessa de existir ou de ter importância quando nós decidimos que ela é inconveniente para a nossa busca de prazer, poder e lucro. As nossas tentativas de inverter a ordem do universo nunca terão sucesso. O que é bom continuará sendo bom; o que é verdadeiro continuará verdadeiro. Como a criança frustrada que fica irritada quando uma peça não se encaixa no quebra-cabeças que ela tenta montar, as pessoas e civilizações só ficarão mais e mais agitadas tentando fazer com que a nossa realidade preferida se encaixe na ordem divina. 

Tentativas de subverter a ordem divina raramente se anunciam a si mesmas, mas há uma linguagem que esconde reivindicações sobre o certo e o errado – e sobre religião verdadeira e a enganosa – que invariavelmente criam uma falsa equivalência entre as prerrogativas humanas e divinas. Nas relações entre os seres humanos, a providência de Deus se estabelece na concepção de justiça através das autoridades competentes nas várias esferas da vida social: a autoridade civil para o bem comum temporal, a hierarquia eclesial para o bem comum sobrenatural, os pais para o bem comum da família, e assim por diante. Deve haver reverência e solicitude na relação de autoridade. 

Como sabemos, a realidade caótica que vivemos é fruto do orgulho, da cobiça que, a cada geração de pessoas, comunidades e sociedade, entra em metástase. O orgulho se rebela contra o serviço, a obediência, a submissão e a realidade. Mas ele nunca resulta em liberdade genuína, ao rejeitar a ordem libertadora da criação de Deus, ele nos leva unicamente à escravidão.

Mas o episódio evangélico não nos diz somente isto. Seria uma amarga constatação ter de concluir que Jesus está no mundo, mas o mundo não o reconhece, exatamente como aconteceu a primeira vez (cf Jo 1,10). O episódio nos diz também, e sobretudo, como e quando Jesus se dá a conhecer hoje, como e quando enfim, se realiza o encontro nesta terra com o Cristo ressuscitado.

Antes de tudo, através da Palavra de Deus, as Escrituras. Foi ao ouvir Jesus que explicava as Escrituras que o coração dos dois discípulos começou a transformar-se e a acolhê-lo, porque a Palavra de Deus contém a Ele, está repleta de sua força e de sua vida. Procurar, portanto, Jesus por meio de sua palavra, que é o Evangelho.

Mas esta ainda é a preparação. O encontro verdadeiro, o abrirem-se os olhos dos discípulos, a compreensão, são reservados a outro momento mais íntimo: aquele da comunhão, em que nos sentamos à mesa com Jesus e ele não dá somente sua palavra, mas toda sua pessoa oculta num pedaço de pão. Há pessoas queridas que reconhecemos de longe e depois de muito tempo por um simples gesto com o qual nos ficaram impressas. Jesus é reconhecido “ao partir do pão”. Então o sacramento ilumina a palavra e se faz unidade e luz; fez-se a experiência de Jesus e de sua presença, nem sempre tão vistosa. Para os discípulos de Emaús isto veio acompanhado com uma onda de alegria que os fez exclamar: “Como nos ardia o coração quando nos falava pelo caminho!”.

Se Jesus se dá a conhecer através da proclamação da palavra e através do partir do pão, então nós compreendemos que não precisamos mais olhar longe, para realidades que entretém, para técnicas que levantam o ânimo, para estratégias que fidelizam. Nós somos aqueles dois discípulos! O culto (sendo cristocêntrico) deve nos fazer reviver integralmente sua experiência.

Acode-nos, porém, uma reflexão: Por que então quando nós nos reunimos para o culto dominical os nossos olhos não se abrem para reconhecer Jesus e o nosso coração não arde enquanto ouvimos as Escrituras? Por que voltamos para casa com o coração angustiado como quando viemos? 

A resposta é, em parte ao menos, esta: nós não reconhecemos o Senhor ao partir do pão porque nós, por nossa vez, não partimos nosso pão com os irmãos. Observemos melhor a experiência daqueles dois discípulos: há um detalhe que até agora nos passou despercebido. Eles não tinham ainda reconhecido que aquele que caminhava com eles era Jesus; contudo o convidaram a partilhar com eles o pão, o hospedaram em sua casa, preocupados com aquele forasteiro que se encontrava em viagem, quando o dia estava para findar. Foi este gesto de hospitalidade que dispôs seu coração a reconhecê-lo. Deveríamos, portanto, também nós na vida, esforçar-nos para partir o pão, isto é, partilhar a alegria, dar nossa atenção e nosso perdão. Se depois nos acontece de encontrar um irmão que está realmente passando necessidade e que tem fome, devemos partilhar com ele também o pão material.

E, talvez, então, o Senhor se comprazerá com nossos cultos. São Justino, que viveu no século II depois de Cristo, assim descreve uma assembleia dos cristãos: “No fim da reunião, todos aqueles que têm em abundância, e o querem, dão conforme lhes agrada aquilo que desejam. O que é recolhido é colocado junto àquele que preside e ele socorre os órfãos e as viúvas e aqueles que, por doença ou por outra razão, vivem em necessidade, portanto, também aqueles que estão na prisão e os peregrinos que chegam de fora. Numa palavra, toma conta de todos os necessitados”.

Devemos recuperar, embora de formas diferentes, essa atenção para com as necessidades dos pobres. Jesus escolheu ficar conosco até o fim do mundo e tornar-se conhecido por nós nestes três “lugares”: em sua palavra, ao partir do pão e nos irmãos.