Naquele tempo, vendo Jesus as multidões, subiu ao monte e sentou-se. Os discípulos aproximaram-se, e Jesus começou a ensiná-los. “Aquele tempo” se torna agora “este tempo”; agora ele está aqui, nós nos aproximamos dEle, sentamos à sua frente para ouvi-Lo.

Sua Palavra nesse tempo, hoje, começa assim: “Bem-aventurado os pobres de espírito”. É uma bem-aventurança que teremos oportunidade muitas vezes de comentar. Em geral, quando se fala das bem-aventuranças, fica-se somente nesta primeira e, em parte, com razão, porque nele estão contidas, em certo sentido, todas as demais. Entre as sete bem-aventuranças que se sucedem há, porém, algumas que se tornaram extremamente atuais em nosso tempo e que não podemos mais deixar de lado. São especialmente duas: Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra! Bem-aventurados os pacíficos, porque serão chamados filhos de Deus!

Elas nos põem o problema dos cristãos diante da violência e da luta de classe. Será que esses dois assuntos são compatíveis com o “bem-aventurados os mansos e bem-aventurados os pacíficos”? Essas bem-aventuranças entraram em crise e poucos já falam delas, exatamente porque elas não combinam com certo clima de conflito permanente, de desprezo juvenil, de propósitos revolucionários, vigentes em amplas camadas do povo cristão.

Mas são realmente tão simples seu sentido e sua aplicação? O que quis dizer Jesus exaltando a multidão? Mansos, pacíficos são na Bíblia os humildes e os pobres; ou seja, aqueles que não tem os meios ou a vontade de fazer justiça sozinhos. Aqueles que não confiam nem em carros, nem em cavalos, mas põem sua força no nome do Senhor (Sl 20,7-8). No Antigo Testamento,  a esses os profetas prometem a salvação nas horas da angústia, de guerra e de deportação. Eles são aquele “resto de Israel” do qual o profeta Sofonias fala-nos hoje também:

“Todos vocês, humildes, busquem o Senhor e sigam suas ordens. Busquem a justiça e vivam com humildade; talvez o Senhor os proteja no dia de sua ira. Só restarão os pobres e os humildes, pois eles confiam no nome do Senhor. O remanescente de Israel não cometerá injustiça; não mentirão nem enganarão uns aos outros. Comerão e dormirão em segurança, e não haverá quem os atemorize.” (Sofonias 2,3; 3,12-13).

Também o apóstolo Paulo, em sua primeira carta à igreja aos coríntios (1Co 1,26-31), pensa nessa categoria de pessoas: Ele convida os primeiros cristãos a olhar a seu redor para constatar como Deus escolhe exatamente entre estes a seu povo, o novo resto de Israel: “Não há entre vocês, muitos sábios, muitos poderosos, muitos nobres. Deus escolheu aquilo que no mundo é fraco para confundir os fortes”.

Jesus é o protótipo destes mansos, a ponto de exclamar: “Tomem sobre vocês o meu jugo. Deixem que eu lhes ensine, pois sou manso e humilde de coração, e encontrarão descanso para a alma” (Mateus 11,29). Mansidão significa, além de uma atitude interior do coração, também certa atitude em relação ao uso da força e da violência. Jesus é a mais fulgurante manifestação disso. A ele o evangelista aplica as palavras messiânicas de Isaías. Não quebrará o caniço rachado, nem apagará a mecha que ainda fumega (Mt 12,20). Em seu tempo a Palestina vinha sofrendo surtos de revoltas dos zelotas contra as classes ricas do lugar e contra os dominadores romanos. Às vezes, chegava-se a atos de violência e terrorismo. E Jesus sabe disso, porque numa ocasião fala de repressão sangrenta por parte de Pilatos de uma tentativa de revolta (cf Lc 13,1 ss). Um de seus apóstolos, Simão, o zelota, provinha, talvez, daquele grupo. Não está excluído que alguns grupos destes revolucionários tenham tentado cooptar Jesus a fazer parte de suas facções. Ele, porém, recusou decididamente qualquer convite neste sentido; fugiu quando vieram proclamá-lo rei, isto é, chefe de um movimento de resistência armada (cf Jo 16,15). A Pedro, no Getsêmani, disse: “Guarde sua espada”, disse Jesus. “Os que usam a espada morrerão pela espada” (Mt 26,52), renunciando assim opor qualquer resistência à sua captura. À violência ele opôs o martírio, isto é, o testemunho. É para dar testemunho da verdade que nasci e vim ao mundo (Jo 18,37).

 As tentativas feitas por alguns estudiosos de colocar Jesus entre os revolucionários de seu tempo estão destituídas de qualquer fundamento e, de fato, abandonadas. A recusa de violência é total em Jesus, seja em sua vida, seja em sua Palavra. A última das bem-aventuranças escutadas hoje diz: Bem-aventurados sereis quando vos caluniarem, quando vos perseguirem e disserem falsamente todo mal contra vós por causa de mim”. Não há uma bem-aventurança contrária: bem-aventurados vós quando vos fizerem valer, quando tiveres pago olho por olho, dente por dente. Tal pensamento é inconcebível e absurdo para o Evangelho.

Todavia, devemos ficar atentos a não instrumentalizar a Palavra de Jesus. Ele – dissemos – recusa a violência em todas as suas formas: portanto, não somente a violência de reação, mas também aquela de quem inicia a violência, embora escondendo o punho de ferro numa luva de veludo. Se há um “ai dos violentos!” no Evangelho – como eu acho que há de uma ponta a outra – ele atinge antes de tudo a eles: aqueles que humilham e submetem, aqueles que mandam para o exílio, assim como ele foi exilado no Egito por Herodes, aqueles que emitem sentenças injustas, como agiram com ele no Sinédrio e Pilatos, aqueles que mandam matar para contentar uma bailarina … Jesus não ignora que há também essa violência entre os homens e, se disse um “não” à violência de quem foi ferido numa face, disse um “não” ainda mais terrível a quem fere face a face.

Estou certo de que vocês, a este ponto, conhecendo o Evangelho, já se perguntaram: e então, como se explica Jesus expulsando os negociantes do templo; Jesus que com voz inflamada grita: Ai de vós fariseus, e escribas [...]; Jesus que diz: vim trazer a espada e o fogo a terra? (cf Lc 12,49). Como se explicam estes comportamentos?
É salutar esta reação, que foi a conduta de muitos leitores modernos do Evangelho, sobretudo jovens cristãos comprometidos nos conflitos da sociedade. Ela, com efeito, nos levou a descobrir uma coisa: com a mansidão e o pacifismo Jesus não quis apagar todo ressentimento justo do homem, nem o tornar inerte diante da injustiça; não quis cobrir as falcatruas e deixar, em última análise, os pobres e os fracos à mercê dos poderosos. Se a religião foi alguma vez na história “o ópio do povo”, não foi de modo algum no fundador do cristianismo; portanto, não faz parte da religião cristã em si mesma. Quantas inverdades se disseram no passado (por exemplo, por Nietzche) a respeito da resignação passiva pregado pelo Evangelho! Ninguém mais que Jesus denunciou com maior evidência o poder que explora os fracos e que se apresenta, além disso, como benfeitor dos homens (cf Lc 22,25). Jesus nada disse contra a mudança; ao invés, a palavra-chave sobre o Evangelho – conversão – significa exatamente mudança.
  • Ele, porém, deu à mudança e à luta um impulso radicalmente novo: não o ódio, mas o amor; não a violência, mas se for preciso, o martírio. Sua revolução não é “contra” alguém, como quase todas as revoluções humanas, mas “para” alguém.

No fundo, também nós cristãos podemos subscrever a afirmação de que “o mundo só será salvo pelos rebeldes” e de que “os rebeldes são o sal da terra (André Gide – escritor francês; recebeu o Nobel de Literatura de 1947). Tudo consiste em saber contra o que se deve revoltar-se e por que se deva tornar-se rebeldes: se por amor ou por ódio, ou pior, por orgulho. Aqui cabe um destaque: é tempo de refletir se fazemos evangelismo ou proselitismo – falar mal de outra instituição de fé porque pensam diferente, possuem costumes religiosos para nós estranhos e condenáveis, certamente não é a vontade de Deus, não geram paz e unidade no Corpo de Cristo como sabemos. Quem ama se aproxima, dialoga, procura entender (história da Igreja contada pelo outro lado) por que uma instituição cristã pensa e age tão diferente como achamos ser correto. O mundo age assim diante do tribunal; o juiz ouve o advogado e testemunhas de defesa e acusação para tomar um veredito. Nossa motivação é muito mais sublime e há o maior dos mandamentos que regem nossos relacionamentos – “amem uns aos outros como eu amo vocês” (Jo 15,12 cf 1Co 13,4-13).

  • A escolha do Evangelho – sabe-se – é a primeira: o amor. Mas não um amor vazio ou “feito de palavras somente”, como denomina São João, mas um amor demonstrado com os fatos que se concretiza na aproximação, no ouvir sem julgar, no acolher com afeto, na partilha …
Pergunta-se, porém: este amor produz de verdade mudanças? A história parece nos dar resposta negativa, porque há tanta coisa para ser mudada a nosso redor, a tal ponto que também alguns cristãos entram, às vezes, em crise consigo mesmos e começam a olhar com simpatia a violência e a luta revolucionária, enfim, àquelas que o apóstolo Paulo chamava “as coisas fortes do mundo”. Cristo os enviou como cordeiros no meio de lobos, mas eles, às vezes, são tentados a se tornar lobos contra os lobos.

Não devemos vacilar na fé. Se a mudança é pouca ou lenta demais, é porque há muito pouco amor cristão no mundo e não porque há demais. Somente ele tem condições de produzir mudanças positivas, reais e irreversíveis, em nível não só de estruturas, mas também de consciências e de pessoas. Jesus usou apenas a arma do amor e da não violência, e, contudo, hoje todos admitem que ele fez mais pelos pobres, contribuindo muito para mudar a sorte deles, do que todas as revoluções proletárias de seu tempo, seja dos zelotas, seja dos escravos. Ele ofereceu uma razão a mais aos homens para lutar: exatamente aquela que os ateus ridicularizaram: a esperança da vida eterna. Porque está mais disposto a dar a vida pela causa da justiça e dos pobres que sabe que esta vida, uma vez perdida, vai ser encontrada depois da morte do que aquele que nada mais espera depois desta vida. A terra que Jesus promete aos mansos não é a terra material, mas a Terra Prometida, o Reino dos Céus que, porém, deve ser instaurado em seu coração já a partir desta vida e com isso torná-los felizes. Bem-aventurados os mansos porque herdarão a terra!

Numa sociedade de raivosos, de violência contínua, de intolerância, de gente arrogante, nosso Mestre nos apresentou hoje sua proposta, tão diferente daquela do mundo. A nós, seus discípulos, pede-nos que não sejamos assim; que sejamos, ao invés, homens de paz, mesmo que fortes, aliás, por sermos pessoas fortes. Só os fortes podem se permitir ser mansos e portadores da paz.

O conjunto de todas as Bem-aventuranças traça, pois, um único ideal: o da santidade. Ao escutarmos hoje novamente, em toda sua radicalidade, essas palavras do Senhor, reavivamos em nós esse ideal como eixo de toda a nossa vida. Porque Jesus Cristo Nosso Senhor pregou a boa nova a todos, sem distinção alguma. Uma só panela e um só alimento: O meu alimento é fazer a vontade dAquele que me enviou e consumar a sua obra (Jo 4,34). Chama cada um à santidade e a cada um pede amor: a jovens, a velhos, a solteiros e casados, sãos e enfermos, a cultos e ignorantes, a católicos e protestantes, estejam onde estiverem.

Sejam quais forem as circunstâncias por que atravessemos na vida, temos de sentir-nos convidados a viver em plenitude a vida cristã. Não pode haver desculpas, não podemos dizer a Deus: “Espero Senhor, que solucione este problema, que me recupere dessa doença, que deixe de ser caluniado ou perseguido …, e então começarei de verdade a buscar a santidade”. Seria um triste engano não aproveitarmos precisamente essas circunstâncias duras para nos unirmos mais a Deus.

EMPREGAR OS MEIOS OPORTUNOS para evitar a dor, a doença, a pobreza, a injustiça, não desagrada a Deus. Mas as Bem-aventuranças ensinam que o verdadeiro êxito da nossa vida está em amarmos e cumprirmos a vontade de Deus a nosso respeito.

Mostram-nos, ao mesmo tempo, o único caminho capaz de levar uma pessoa a possuir plena dignidade que condiz com a sua condição de ser-humano. Numa época em que tantas coisas inclinam a humilhação e à degradação pessoal, as Bem-aventuranças são um convite à retidão e à dignidade de vida. Pelo contrário, tentar a todo custo aliviar o peso da tribulação – como se tratasse de um mal absoluto – ou buscar o êxito humano como um fim em si mesmo, são caminhos que o Senhor não pode abençoar e que não conduzem à felicidade.
Como sabemos, “Bem-aventurado” significa “feliz”, “próspero”, e em cada uma das Bem-aventuranças “Jesus começa por prometer a felicidade e por indicar os meios para consegui-la. Por que será que começa por falar da felicidade? Porque em todas as pessoas há uma tendência irresistível para serem felizes; esse é o fim que se tem em vista em todos os seus atos; mas muitas vezes buscam a felicidade no lugar em que ela não se encontra, em que só acharão tristeza” (R. Garrigou Lagrange, As três idades da vida interior).

“Buscai o Senhor, vós todos, humildes da terra, que observais a sua lei […] Deixarei subsistir no meio de ti um povo humilde e modesto, que porá a sua confiança no nome do Senhor”, foi o que lemos no início dessa reflexão em Sofonias.

O espírito da humildade, a fome de justiça, a misericórdia, a pureza de coração, o suportar injúrias por causa do Evangelho são aspectos de uma única atitude da alma: o abandono em Deus, a confiança absoluta e incondicional no Senhor. É a atitude de quem não se contenta com os bens e consolos das coisas deste mundo, antes põe a sua esperança definitiva em outros bens que não esses, sempre pobres e pequenos para uma capacidade tão grande como a do coração humano.

Bem-aventurados os pobres em espírito ... E no Magnificat da Virgem Maria ouvimos: “Cumulou de bens os famintos e despediu de mãos vazias os ricos” (Lc 1,53). Quantos não se transformam em pessoas vazias porque se agarram satisfeitos ao que tem! O Senhor convida-nos a não nos contentarmos com a felicidade que nos possam dar bens passageiros, e anima-nos a desejar aqueles que Ele preparou para nós.

Jesus diz aos que o seguem – naquele tempo e agora – que não será obstáculo para serem felizes qualquer adversidade: Estai alegres e contentes porque grande será a vossa recompensa no céu (Mt 5,11-12). Assim como nenhuma coisa na terra pode nos proporcionar a felicidade que todos procuramos, assim nada pode nos tirá-la se estivermos unidos a Deus. Peçamos ao Senhor que transforme as nossas almas, operando uma mudança radical nos nossos critérios sobre a felicidade e a infelicidade.

Seremos necessariamente felizes se estivermos abertos aos caminhos de Deus em nossas vidas. E isto ainda que haja quem pareça alcançar todos os bens que se podem conseguir nesta vida curta. “O rico não se deve ter por felizardo somente pelas suas riquezas – diz São Basílio – nem o poderoso pela sua autoridade e importância; nem o forte pela saúde do seu corpo; nem o sábio pela sua grande eloquência. Todas estas coisas são instrumentos da virtude para os que as usam retamente; mas elas, em si mesmas, não contêm a felicidade.”

  • Quando as pessoas, para encontrarem a felicidade, experimentam caminhos diferentes do da vontade de Deus, diferentes daquele que o Mestre nos traçou, no fim só encontram solidão e tristeza. Longe do Senhor, só se colhem frutos amargos e, de uma forma ou de outra, acaba-se como o filho pródigo enquanto esteve longe da casa paterna: comendo bolotas e cuidando de porcos (cf Lc 15,11).

São felizes aqueles que seguem o Senhor, aqueles que lhe pedem e fomentam dentro de si o desejo de santidade. “Em Cristo estão já presentes todos os bens que constituem a felicidade. Alegre-se o coração dos que procuram o Senhor – Luz para que investigue os motivos da tua tristeza” (Josemaria Escrivá).

Quando nos falta a alegria, não será porque, nesses momentos, não procuramos a Deus de verdade, no trabalho, naqueles que nos rodeiam, nas dificuldades? Não será talvez, porque ainda não estamos inteiramente desprendidos? Alegre-se o coração dos que procuram o Senhor!