Ó Senhor, tu me constrangeste, e eu me deixei constranger. És mais forte que eu

e prevaleceste. Agora, sou motivo de zombaria todos os dias; todos riem de mim. Pois, sempre que abro a boca, é para gritar: “Violência e destruição!”. Jeremias 20,7

O profeta, num desabafo, faz uma confissão dramática diante de Deus, que o envia a anunciar “violência e destruição”, isto é, um tempo de sofrimento para o povo que não o escuta, mas só quer ouvir os profetas que acariciam e embalam o povo com previsões de paz e de segurança. Tanto – dizem eles – temos o Templo de Deus.

Nestas condições, o profeta, que fala realmente em nome de Deus, se torna objeto de ironia, a chacota de todos; faz o papel de um homem desequilibrado e do profeta das desventuras. Falar em nome de Deus se torna uma tarefa desgastante: “Por causa da palavra do Senhor, sou objeto de deboche e de zombaria o tempo todo” (v.8). Jeremias chega a cogitar: “Não me lembrarei mais de Deus, já não falarei em seu nome” (v.9). É a tentação da fuga diante das exigências esmagadoras da missão profética, a tentação de não falar mais em nome de Deus, ou de dizer o que o povo gosta de ouvir: palavras que acariciam sua vontade de bem-estar e o embalam numa falsa segurança. Mas o profeta não vai desistir, não pode desertar: Deus o constrangeu. A Palavra de Deus entrou nele e é qual fogo devorador que o profeta não pode abafar. Por isso não vai se calar.

Naquele tempo, Jesus começou a mostrar a seus discípulos que devia ir a Jerusalém e sofrer muito da parte dos anciãos, dos sumos sacerdotes e dos mestres da Lei, e que devia ser morto e ressuscitar no terceiro dia. Então Pedro tomou Jesus à parte e começou a repreendê-lo, dizendo: “Deus não permita tal coisa, Senhor! Que isso nunca te aconteça!”

Jesus, porém, voltou-se para Pedro e disse: “Vai para longe, Satanás! Tu és para mim uma pedra de tropeço, porque não pensas as coisas de Deus, mas sim as coisas dos homens!”

Então Jesus disse aos discípulos: “Se alguém quer me seguir, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e me siga. Pois, quem quiser salvar a sua vida vai perdê-la; e quem perder a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la. De fato, que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro, mas perder a sua vida? O que poderá alguém dar em troca de sua vida? Porque o Filho do Homem virá na glória do seu Pai, com os seus anjos, e então retribuirá a cada um de acordo com sua conduta”. Mateus 16, 21-27

O apóstolo Pedro, que tinha acabado de reagir de forma maravilhosa, “O Senhor é o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mt 16,16), inspirado pelo Espírito Santo, agora é movido por impulsos carnais. Agora ele diz: “Deus não permita tal coisa, Senhor”

Primeiramente, precisamos notar que São Pedro está fazendo uma oração: “Deus não permita”. É um desejo, uma profecia, mas voltado para Deus: — “Que Deus não o permita”. Porém, embora fosse uma oração piedosa, Jesus reagiu de forma bem dura.

Vejamos a resposta de Jesus a esse anseio, aparentemente bom, do apóstolo. Pedro está dizendo a Jesus: “Que o Senhor não morra na Cruz”, e a resposta de Jesus a ele é a mais dura e terrível de todo o Evangelho. Em outras passagens, Jesus chama os fariseus de “raça de víboras”. No evangelho de São João, por exemplo, Ele diz claramente que os judeus são “filhos do diabo”. Ora, aqui Jesus não chamou a Pedro “filho do diabo”; chamou-lhe “Satanás”!

Como chegamos a algo tão grave como as palavras que Jesus dirige a Pedro: “Vai para longe, Satanás”, ou: “Afasta-te, Satanás”.  É interessante que as palavras mais duras, Jesus as reserva para os Apóstolos. Mas por que Jesus está dizendo palavras tão graves e tão sérias a Pedro? Exatamente porque o apóstolo Pedro entendeu quem é Jesus, mas não entendeu por que Ele veio. Jesus é, sim, o Messias, e ao dizer que Jesus é o Messias, o discípulo está professando que Ele é o Filho de Deus encarnado: Ele é homem, o Ungido, mas também é o Filho eterno de Deus.

Pedro professa a fé perfeitamente, mas não enxerga por que Jesus veio. Com isso, termina destruindo tudo, porque Jesus veio ao mundo por nós e para nossa salvação; Ora, a salvação acontece na Cruz. Então, ao dizer que Jesus não deveria ir a Jerusalém para morrer na Cruz, o apóstolo está, digamos assim, querendo impedir a razão de ser do nascimento de Jesus.

O Senhor disse: “O meu alimento é fazer a vontade do meu Pai”. E qual é o alimento de Jesus, isto é, a vontade do Pai? A nossa salvação, que sejamos salvos. Por isso, nós precisamos entender que a Cruz é salvífica. Ela é verdadeiramente caminho de salvação.

Na teoria, parece tudo muito claro; mas, quando pegamos isso e o aplicamos à nossa vida, começamos a enxergar que existe uma tendência, no nosso dia a dia, de fazermos exatamente o que Pedro fez. Nós estamos dispostos a crer em Jesus e dizer: “Jesus, o Senhor é a razão da minha vida”. No entanto, quando a cruz nos visita de forma concreta, nossa reação é sempre a de Pedro; é sempre um exagero.

Assim, a nossa tentação é a mesma de Jeremias e de Jonas: fugir da ingrata missão, aparentemente inútil, de anunciar às pessoas de nosso tempo as palavras que elas não gostam e não querem ouvir. E não somente às pessoas que estão diante de nós – aos ouvintes – mas também aquele que está dentro de nós porque também nós que devemos pregar a cruz pertencemos àquela mesma geração que não quer ouvir falar de cruz.

E, todavia, não podemos calar. O povo cristão teria motivo de se envergonhar dos seus sacerdotes no dia em que eles deixassem de falar com coragem e dizer como Paulo: O que nós anunciamos é Cristo e Cristo crucificado (cf 1Co 1,23).

Contudo, hoje, nosso dever não é só anunciar a cruz, mas também o de fazer compreender o significado daquele anúncio, isto é, o sentido que ela tem para nós, para nossa experiência humana e para nosso destino.

Jesus nos diz que precisamos negar a nós mesmos, aprender a perder e perder até a própria vida. Em certo sentido, portanto, a alienar-se de nós mesmos. No entanto nós vivemos numa civilização que recusa e combate a alienação de si mesmo e que propõe, ao invés, como valor supremo da pessoa, a própria realização. O trabalho, o tempo livre, a cultura, toda a promoção e emancipação social, tudo é visto em função de uma autorrealização do ser-humano. A pessoa quer vencer, não perder, tanto menos perder sua vida.

Porém, qual é a realidade que fugimos? Todo mundo sofre. É algo inevitável; os adultos sofrem, as crianças sofrem. Porém, as pessoas imaturas, que não amadureceram na fé, sofrem inutilmente.

É espantoso ver quantas oportunidades maravilhosas as pessoas perdem de crescer espiritualmente — cruzes magníficas, cruzes fantásticas que se manifestam como ocasião divina na vida das pessoas. E perdem essas oportunidades porque sofrem inutilmente, sem fazer da dor um ato de amor e de entrega a Deus.

Então, não é só questão de sofrer. Se o simples ato de sofrer santificasse, estaríamos num planeta de santos. Olhemos para grandes sociedades sofridas como, por exemplo, a sociedade da Europa durante a Segunda Guerra Mundial. Milhões de mortos. Quanto sofrimento! quanta miséria! Mas a Europa ressurgiu da Segunda Guerra Mundial não como um continente mais santo. A Europa ressurgiu da Segunda Guerra Mundial como um continente mais materialista e mais hedonista, à procura de prazer, de uma “alegria” de viver, de uma felicidade material neste mundo. Sofreram, sim; mas poucos aproveitaram o sofrimento para se unir a Jesus.

Olhemos ainda para um continente como a África: fomes, secas, guerras civis, conflitos intestinos em várias nações e etnias, pragas etc. As pessoas sofrem, mas muitos acabam sofrendo inutilmente, porque não aprenderam como a cruz é salvadora.

São Paulo, em sua epístola aos Romanos (12, 1-2), pede pela misericórdia de Deus: “peço que ofereçam o seu corpo como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus”. Pegue os sofrimentos da sua vida e transforme-os em amor. Essa é a graça que precisamos pedir a Deus.

Eis a grande revelação que Jesus quer nos dar neste evangelho e reflexão. Existe, sim, meu irmão, minha irmã, algo de salvífico em, diante das cruzes, sobretudo as inevitáveis da sua vida, inclinar a cabeça a Deus e dizer: “Senhor, que oportunidade de te amar! Que oportunidade maravilhosa de transformar sofrimento em amor!”

São poucos os que transformam a própria dor em amor, mas há muitos que transformam os seus amores em dores. Essa é a grande escolha desta vida. O que você ama? Você ama a sua família? Seus filhos? Sua esposa? Seu marido? Quem sabe você ama coisas menos nobres… Talvez você ame o seu dinheiro, o seu carro, o seu corpo, a sua saúde. Quem sabe você ama até coisas pecaminosas, como drogas, sexo desregrado, bebida…

Pois bem, se, esquecidos de Deus e do Céu, deixamos de transformar nossa vida, o que acontece? Todos os nossos amores irão se transformar em dor, sofrimento.

Jesus nos oferece a possibilidade e a esperança de romper este muro que se levanta em nossa frente. Nos oferece fazer percorrer exatamente o caminho inverso: o da renúncia. Mas fiquemos bem atentos: renunciar a que? Não às nossas autênticas possibilidades e aos valores humanos, mas à parte doentia de nós mesmos, o inimigo de Deus e nosso, inimigo que mora em nossa carne; a velha natureza, enfim, como o chama a Bíblia: o homem egoísta, dominado pela ganância e pelo apetite desordenado (concupiscência), que não é mais capaz de amar ninguém a não ser a si mesmo e isto ademais de modo equivocado. 

Nesse sentido Paulo disse: “E os que são de Cristo Jesus crucificaram a carne, com as suas paixões e os seus desejos” (Gl 5,24). Crucificaram a criatura velha para fazer surgir a nova, o homem velho para fazer renascer o homem novo, criado à imagem de Deus, vocacionado para a vida eterna: o homem que é, finalmente, livre de fato. Na realidade, isto não é alienar-se, mas sair de um estado crônico de alienação.

Vamos mais um passo à frente: renúncia por quem e por qual motivo? Por causa de mim, por amor a Deus: por causa, portanto, de uma escolha, a escolha de Deus em lugar do nosso eu; por causa da esperança que Deus nos oferece além da morte; “O filho do homem virá na glória do Pai e então dará a cada um o prêmio de sua conduta” (Mt 16,27).

Este caminho estreito que o Evangelho nos traça hoje tem, portanto, Deus como sua meta, como prêmio (“Eu mesmo serei tua recompensa”, nos diz o Senhor, como a Abraão: cf Gn 15,1). Mas tem Deus também no início. Jesus, com efeito, inaugurou e percorreu pessoalmente este caminho e por isso “tomar a cruz” significa agora “ir após ele”, colocar os pés em suas pegadas, segui-lo. Há uma sucessão límpida e transparente de significado no evangelho que meditamos: Jesus fala da cruz dos discípulos, depois de ter falado da sua: “O filho do homem irá para Jerusalém, e lá vai sofrer, será morto […] Mas ao terceiro dia ressuscitará.”

O Príncipe da paz, o poderoso, o glorioso, cujo reinado não terá fim (Is 9,5-6); e ao mesmo tempo é o Servo de Deus, desprezado, torturado, esmagado por nossas culpas, e por cujo sofrimentos nos vem a redenção (Is 53,4-5). Essas são as duas imagens, e ambas estão contidas nas profecias. Nenhuma delas pode ser ignorada. Mas, poderão as duas ser verdadeiras? Não seria fugir ao mistério dizer que o Príncipe da paz deve ser entendido “interiormente, reinando nos corações que acolheram a cruz com fé?” Ou como o “transfigurado” que se manifestará um dia, depois que o Servo tiver consumado o seu sacrifício? Essas interpretações não fazem justiça à visão profética, na qual estão contidas as duas possibilidades: que o povo possa dizer “sim”, mas também que possa dizer “não”; que o Redentor, que submeteu seu amor a essa liberdade humana, tome o caminho que conduz aos corações abertos, ou o que conduz à morte.

Deus sabe que o Messias irá morrer? Certamente, desde toda a eternidade. E, no entanto, isso não deveria acontecer… Quer ele a morte de Jesus? Com certeza, desde sempre. Se os homens se fecham, seu amor precisa seguir esse caminho. Mas eles não deveriam fechar-se… É evidente que a nossa inteligência humana é incapaz de penetrar esse mistério. A sabedoria eterna de Deus e a nossa liberdade; o que não deve acontecer, mas acontecerá; a forma que a obra da Redenção devia tomar e a que ela tomou de fato – tudo isso se entrelaça em um mistério para nós impenetrável. O que acontece é, ao mesmo tempo, liberdade e necessidade, dom de Deus e responsabilidade humana. Meditar sobre essas coisas só tem sentido se essa reflexão nos conduz ao ponto onde, sem renunciar à verdade, deixamos que tudo seja absorvido pela adoração. 

E ser cristão significa adorar desse modo. O ser-humano se torna cristão na medida em que contempla tudo isso, e, instruído pela Palavra de Deus mediante a fé, procura compreendê-lo, querê-lo e vivê-lo. 

Quando ouço Jesus falar dessa necessidade, preciso saber que é para mim que Ele está olhando – e cada um que medita sobre isso deve sentir-se pessoalmente visado. O Pai desde toda a eternidade, Jesus em sua missão terrena, e um povo – mas não qualquer povo antigo que nada tem a ver comigo, e sim eu mesmo, com tudo o que sou e faço – são os fios que tecem essa necessidade. Sou eu que a imponho a Jesus, com toda a indiferença, todo o fracasso e todo o desprezo que Ele sofre por minha culpa.

É este evento de morte e ressurreição do Salvador a fonte e o modelo do nosso perder-se para reencontrar-nos, do nosso morrer para viver. Este evento se repete diante de nossos olhos na Eucaristia, e por ela na comunhão com os irmãos. Procuremos absorver desse acontecimento a coragem para segui-lo e o propósito de oferecer de verdade “nossas pessoas em sacrifício vivo a Deus”. Senhor, ensina-nos a perder-nos para nos reencontrar em Ti para a vida eterna.