“Seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro e os irmãos Tiago e João e os levou, em particular, a um alto monte. E Jesus foi transfigurado diante deles. O seu rosto resplandecia como o sol, e as suas roupas se tornaram brancas como a luz. De repente, Moisés e Elias apareceram e começaram a falar com Jesus. Então Pedro, tomando a palavra, disse a Jesus: — Senhor, bom é estarmos aqui. Se o senhor quiser, farei aqui três tendas: uma para o senhor, outra para Moisés e outra para Elias. Falava ele ainda, quando uma nuvem luminosa os envolveu; e eis, vindo da nuvem, uma voz que dizia: — Este é o meu Filho amado, em quem me agrado; escutem o que ele diz! Ao ouvirem aquela voz, os discípulos caíram de bruços, tomados de grande medo. Jesus aproximou-se e tocou neles, dizendo: — Levantem-se e não tenham medo! Então eles, levantando os olhos, não viram mais ninguém, a não ser Jesus. Enquanto desciam do monte, Jesus lhes ordenou: Não contem a ninguém o que viram, até que o Filho do Homem ressuscite dos mortos” (Mateus‬ 17‬:1‬-9).‬‬‬

A última frase situa o episódio no contexto do anúncio da paixão e ressurreição. De fato, ele tem lugar entre o primeiro e o segundo anúncio, e durante a subida para Jerusalém. O Verbo entrou como luz celeste nas trevas da criação decaída. Mas as trevas lhe resistem: “Não o recebem” (Jo 1,15). Encerram no interior a verdade que o amor queria fazer brilhar no exterior, engendrando assim um sofrimento inacessível ao entendimento humano, perceptível apenas para Deus. Mas aqui, na montanha, a claridade irrompe por um instante. O caminho de Jesus penetra numa escuridão cada vez mais cerrada, até que chegue “a vossa hora” [dos inimigos] e o poder das trevas (Lc 22,53). Mas aqui se manifesta, por um momento, a luz que veio ao mundo e que é capaz de “tudo iluminar” (Jo 1,9). No caminho que conduz à morte irrompe, como uma labareda, o esplendor da glória que só pode manifestar-se para além da morte. O que Jesus dizia sobre a morte e a ressurreição aparece aqui visível e palpável.

Deste texto tão conhecido e familiar do Evangelho, gostaria de enfocar um momento que me parece muito fecundo para uma reflexão próxima à Páscoa.

Estamos no alto do Tabor. Diante dos três apóstolos, Pedro, Tiago e João, surgiu a imagem de Jesus transfigurado. Uma atmosfera de glória e paz indizível pousou sobre o monte e os envolveu a todos. Para os três apóstolos, moídos de cansaço, dúvidas e contrariedades, era como encontrar-se de repente num porto tranquilo depois de uma tormenta. “É bom estarmos aqui […]” Querermos parar por aqui; e já pensam concretamente como realizar o projeto: fazer as tendas. Mas eis que Jesus se levanta e os desperta dizendo-lhes: “Levantai-vos!” Sem pestanejar e a contragosto, encaminham-se para a planície, onde encontram a multidão e os outros apóstolos, onde reencontram o cansaço, a dúvida e a contradição.

Este momento do Evangelho ilumina uma experiência que cada cristão, antes ou depois, deve fazer em sua vida. Chega o momento em que na experiência de uma pessoa ou de uma família se vive certa calma, ou até a felicidade. As dificuldades se esvaem, as pessoas se entendem, estão satisfeitas com o próprio trabalho, com os próprios filhos: a vida parece linda e cheia de promessas para o futuro. Parece-nos, finalmente, estar no alto do Tabor. A tentação de acomodar-se nesta situação é irresistível. Gostaríamos de nunca mais ouvir falar de dor, de lutos a nosso redor; gostaríamos de ir adiante sempre assim. É bom ficar aqui!

Algumas vezes Nosso Senhor, em seus planos, deixa o homem por muito tempo ou para sempre neste porto tranquilo. É preciso que haja também destes sinais no mundo. Mas é a exceção. A maior parte das vezes se aproxima de nós, nos desperta e nos diz também: “Levante-te!” E assim nos joga no turbilhão da vida, no meio de sofrimentos, contradições, conflitos e doenças. Pessoas são obrigadas a fazer saltos mortais para poder equilibrar os abalos familiares; outras têm de ficar assistindo um parente doente ser transportado de um a outro hospital, outras, ainda, são traídas no afeto, ou envolvidas nas trevas da incerteza.

Até aqui é o destino de cada pessoa, crente ou não crente. Não é somente o discípulo de Jesus que passa por essas experiências. Nisso somos todos iguais. Também o ateu têm o seu Tabor, do qual deve descer para subir o Calvário. A diferença está somente na atitude que a pessoa assume diante dessa experiência, no espírito com que a vive. Aqui o discípulo de Jesus deve distinguir-se de quem não têm fé. Como distinguir-se? Pela resposta que irá dar àquele “levanta-te e caminha!”.

Para Abraão, esta voz do Senhor se expressou com as palavras contidas em Gênesis (12,1-4): 

“O Senhor disse a Abrão: — Saia da sua terra, da sua parentela e da casa do seu pai e vá para a terra que lhe mostrarei. Farei de você uma grande nação, e o abençoarei, e engrandecerei o seu nome. Seja uma bênção! Abençoarei aqueles que o abençoarem e amaldiçoarei aquele que o amaldiçoar. Em você serão benditas todas as famílias da terra. Partiu, pois, Abrão, como o Senhor lhe havia ordenado. E Ló foi com ele. Abrão tinha setenta e cinco anos quando saiu de Harã.”

Ele estava tão bem junto a seus familiares, estava gozando de um feliz casamento com Sara, não desejava outra coisa que ter numerosos filhos, muitos rebanhos e alcançar uma idade avançada cercada pela multidão de seus filhos. A voz misteriosa do Senhor o íntima: Levanta-te e vai! É uma ordem dolorosa, porém não é gratuita e caprichosa, por parte de Deus, porque aquilo que lhe promete é muito mais que aquilo que lhe pede: Todas as famílias da terra serão benditas em ti. Abraão partiu como o Senhor lhe tinha dito. Esse momento da vida de Abraão é a expressão plástica da fé; por isso nós continuamos a considerar este pastor caldeu de 4 mil anos atrás “nosso pai na fé”. Deus o chamou, o convidou; ele respondeu sim, confiando nele, sem saber exatamente o que o esperava e também sem garantias.

Este “eis-me aqui” da fé nós o pronunciamos no batismo, isto é, em uma fase de nossa vida na qual não podíamos dar-lhe logo um conteúdo. Eis porque a Igreja nos chama, em diferentes momentos, a realizar e a tornar consciente tal escolha. Esse período que antecede a Páscoa é uma ocasião por excelência para trazer à tona esse compromisso, que jaz sepultado em nossa infância espiritual e na opacidade da vida cotidiana. Chamando-nos à conversão, a Igreja nos chama, na realidade, a repetir e tornar nossa a expressão de Abraão e aquela dos apóstolos no Tabor: sair, descer, ir. Sair da rotina da vida – de nossa Ur da Caldeia – na qual estamos confortavelmente instalados, a mente cheia de projetos e de desejos terrenos. Ir “para a terra que o Senhor nos indica”, isto é, para o futuro da fé, abrindo-nos às promessas que Deus nos faz e às obras que nos pede.

A terra que Deus indica para Abraão era a Terra Prometida, a Palestina; para nós é o Reino de Deus. Não só o Reino de Deus depois da morte, mas aquele que já “está entre nós”, na terra, e para a chegada do qual oramos no “Pai-Nosso”; aquele Reino de Deus que outra coisa não é senão a vontade de Deus sobre mim que espera ser cumprida: “Venha o teu Reino”, isto é, “seja feita a tua vontade”. Sair de Ur da Caldeia e descer do Tabor outra coisa não significam, portanto, que ir corajosamente ao encontro da vontade de Deus.

Como a situação de isolamento que estamos vivendo pode nos levar a um estado de preguiça e inércia, negligenciando esse chamado que recebera Abraão e os Apóstolos?
A preguiça foi destacando-se como pecado grave, sobretudo na sociedade materialista, imersa na cultura do “foge da dor e busca o prazer” – que se move de maneira instintiva, não racional, muito menos espiritual.

Para Santo Tomás, a acídia (preguiça) é o tédio ou tristeza em relação aos bens interiores e aos bens espirituais, como diz Agostinho: “Para a sua alma, todo alimento é repugnante”. Como vemos, para Santo Tomás, essa preguiça significa muito mais do que a falta de vontade de um agir ativo. Segundo Jean Lauand, alguns dos “sintomas” da acídia podem também surgir em casos de mera doença ou alguma situação ocasional, sem alcance moral. 

Tomás de Aquino observa que o homem triste não pensa em coisas grandes e belas, mas só em coisas tristes, a menos que por um grande esforço; por isso, a acídia opõe-se à esperança e à fortaleza. Existe uma boa tristeza pelos pecados, essa é a contrição; e uma má tristeza diante do bem espiritual: essa é a acídia. 

Santo Tomás parte da definição de São João Damasceno: “é certa tristeza que causa pesar”. Isso significa que a acídia é uma tristeza que deprime o ânimo do homem de modo que nada lhe agrada, “assim como se tornam frias as coisas pela ação corrosiva do ácido”. “Acídia” vem, portanto, de “ácido”. A tristeza pelo bem espiritual; a acidez, a queimadura interior do homem que recusa os bens do espírito. E a tristeza não só é já em si mesma um mal, mas fonte de outros males.

A acídia, como pecado grave, pode levar a uma inatividade. Se a tristeza da acídia pode levar à inércia, leva também a uma inquietude. Em sua dimensão que produz inação, a acídia caracteriza-se pela veemência da tristeza, que imobiliza o homem, retardando a ação, daí que S. João Damasceno afirma ser uma tristeza agravante, pesada, isto é, “paralisadora”. Para comprová-lo, Tomás cita 2Cor 2,7: “De maneira que pelo contrário deveis antes perdoar-lhe e consolá-lo, para que o tal não seja de modo algum devorado de demasiada tristeza”. 

O isolamento social (solidão) pode levar ao aumento de depressão, angústias, inquietações existenciais. O fato é que a tristeza também é uma poderosa força destruidora, convidando a (ou impondo) diversas compulsões: das drogas, ao jogo, do consumismo, vício em trabalho (workaholic) etc. A necessidade de encontrar novos modos de comportar-se, relacionar consigo mesmo e com os outros pode gerar angústias, inquietações e grande tristeza. Quando, porém, sobrevém um momento de crise, só há duas possibilidades: ou o homem confia e espera, ou cairá no desespero. 

Para Santo Tomás de Aquino, a raiz do desespero pode ser encontrada na chamada “acídia” ou, como costumamos falar, na “preguiça”. A preguiça metafísica De acordo com São Tomás, essa preguiça metafísica é muito mais do que a falta de vontade de um agir ativo, identifica-se com aquela tristeza do mundo que, nas palavras de São Paulo, “produz a morte” (2Cor 7,10).

Como vencer a tristeza interior? 

“Ninguém pode morar na tristeza.” (Santo Tomás de Aquino) 

Para vencer a acídia, portanto, é necessário resistir, ou seja, pensar nos bens espirituais  – “trazer à memória o que pode me dar esperança” (Lm 3,21) e, assim, eles tornam-se mais prazerosos para nós. E é isso o que se procura fazer na oração. Para superar a preguiça, não há outro caminho a não ser o de uma oração fiel, perseverante e humilde, que procura considerar os bens divinos.

Precisamos persuadir-nos que Deus nos ouve, de que está com os olhos postos em nós; assim se inundará de paz o nosso coração. A paz de Deus que Jesus oferece aos discípulos após a ressurreição quando os encontra amedrontados e paralisados. Uma paz que nos dispõe a uma nova conversão, uma retificação, a escutar mais atentamente as suas inspirações, os santos desejos que faz brotar na alma e a colocá-los em prática.

Desde a nossa primeira decisão consciente de viver integralmente os ensinos de Cristo, não há dúvida de que avançamos muito no caminho da fidelidade à sua Palavra. Mas não é verdade que ainda restam tantas coisas por fazer? Não é verdade que resta sobretudo tanta soberba, vaidade, egoísmo? É preciso, sem dúvida, uma nova mudança, uma lealdade mais plena, uma humildade mais profunda, de modo que, diminuindo o nosso egoísmo, Cristo cresça em nós, já que é preciso que Ele cresça e eu diminua.

Não é possível ficarmos imóveis. Temos que avançar em direção à meta apontada por São Paulo: “Não sou eu quem vivo; é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20). O anseio é alto e nobilíssimo: a identificação com Cristo, a santidade. Mas não existe outro caminho, se desejamos ser coerentes com a vida no Espírito que o Pai fez nascer em nossas almas pelo Batismo. Avançar é progredir na santidade; e negar-se ao desenvolvimento normal da vida cristã é retroceder. Porque o fogo do amor de Deus precisa ser alimentado, crescer cada dia, ganhando raízes na alma: e o fogo mantém-se vivo quando se queimam coisas novas. Por isso, se não aumenta, leva caminho de extinguir-se. Lembremo-nos das palavras de Santo Agostinho: Se disseres basta, estás perdido. Procura sempre mais, caminha sempre, progride sempre. Não permaneças no mesmo lugar, não retrocedas, não te desvies (Sermão 169,15).

Esse tempo propício que antecede a Páscoa coloca-nos diante destas perguntas fundamentais: progrido na minha fidelidade a Cristo, em desejos de santidade, em generosidade apostólica na minha vida diária, no meu trabalho cotidiano entre os meus pares de profissão?

Cada um deve responder a estas perguntas, sem ruídos de palavras. E perceberá como é necessária uma nova transformação, para que Cristo viva em nós, para que a sua imagem se reflita sem distorções na nossa conduta.

“Se alguém quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz cada dia e siga-me” (Lc 9,23). Isto é o que Cristo nos repete ao ouvido, intimamente: a Cruz, cada dia. Não apenas – escreve São Jerônimo – no tempo da perseguição ou quando se apresenta a possibilidade do martírio, mas em todas as situações, em todas as obras, em todos os pensamentos, em todas as palavras, neguemos aquilo que antes éramos e confessemos o que agora somos, já que renascemos em Cristo” (Epístola 121,3). 

Estas considerações não são, afinal, senão o eco daquelas outras palavras do apóstolo: “Pois antigamente vocês estavam mergulhados na escuridão, mas agora têm a luz no Senhor. Vivam, portanto, como filhos da luz! Pois o fruto da luz produz apenas o que é bom, justo e verdadeiro. Procurem descobrir o que agrada ao Senhor” (Ef 5,8-10).

A conversão é coisa de um instante; a santificação é tarefa para toda a vida. A semente divina do amor, que Deus depositou em nossas almas, aspira a crescer, a manifestar-se em obras, a dar frutos que correspondam em cada momento ao que é agradável ao Senhor. Por isso, é indispensável que estejamos dispostos a recomeçar, a reencontrar – nas novas situações da nossa vida – a luz e o impulso da primeira conversão. E esta é a razão pela qual nos devemos preparar com um exame profundo, pedindo ajuda ao Senhor, para que possamos conhecê-Lo melhor e conhecer-nos melhor a nós mesmos. Não existe outro caminho, se queremos converter-nos de novo.

Uma nuvem envolve agora Cristo no Tabor e dela surge a voz poderosa de Deus Pai: “Este é meu Filho muito amado; ouvi-o”. A sua voz faz-se ouvir em todas as épocas, sobretudo através dos ensinamentos da Igreja. Eles levantam os olhos e não viram mais ninguém a não ser Jesus. Elias e Moisés já não estavam presentes. Só veem o Senhor: o Jesus de sempre, que por vezes passa fome, que se cansa, que se esforça por ser compreendido … Jesus sem especiais manifestações gloriosas. Normalmente, os apóstolos viam o Senhor assim; vê-lo transfigurado foi uma exceção.

Nós devemos encontrar Jesus no cotidiano, no lar, no trabalho, na rua, nos que nos rodeiam, na oração, meditação, contemplação, contrição, adoração. Devemos aprender a descobri-lo nas realidades ordinárias, correntes, fugindo da tentação de desejar o extraordinário. 

À alegria luminosa da Páscoa, os três apóstolos não teriam chegado se tivessem parado no Tabor, à sombra das três tendas. Também nós não chegaremos lá a não ser seguindo corajosamente o Senhor.