A Palavra de Deus que meditaremos gravita em torno desta frase do Evangelho: todo aquele que se exaltar será humilhado, e todo aquele que se humilhar será exaltado.” Há virtudes que constituem o alicerce de outras: a humildade é uma virtude tão necessária que Jesus aproveita qualquer circunstância para pô-la em destaque.

No episódio narrado pelo Evangelho, o Senhor foi convidado para um banquete em casa de um dos principais fariseus. Jesus repara que os convidados vão ocupando os primeiros lugares, os de maior honra. Quando possivelmente já estavam sentados e podia estabelecer-se uma conversa, o Senhor expôs-lhes uma parábola:

“Quando você for convidado para um banquete de casamento, não ocupe o lugar de honra. E se chegar algum convidado mais importante que você? O anfitrião virá e dirá: ‘Dê o seu lugar a esta pessoa’, e você, envergonhado, terá de sentar-se no último lugar da mesa. “Em vez disso, ocupe o lugar menos importante à mesa. Assim, quando o anfitrião o vir, dirá: ‘Amigo, temos um lugar melhor para você!’. Então você será honrado diante de todos os convidados. Pois os que se exaltam serão humilhados, e os que se humilham serão exaltados”

Lc 14:8-11

É importante entender bem o sentido e a finalidade desta parábola. À primeira vista, com efeito, poderia parecer que Jesus esteja dando uma norma de boa educação ou etiqueta social, ou até mesmo de cálculo sútil (escolhe o último lugar, assim poderá chegar no primeiro!). Este era efetivamente o sentido que os rabinos de seu tempo davam à máxima:

“Não chame atenção para si diante do rei, nem exija um lugar entre as pessoas importantes. É melhor esperar até ser convidado perante os nobres que ser mandado embora e humilhado em público”

Pv 25:6,7.

Mas nos lábios de Jesus a perspectiva muda radicalmente e também aquela palavra de sabedoria natural torna-se “palavra de vida eterna”. Para Jesus se trata do banquete escatológico. Entre a escolha do lugar por parte dos convidados e a intervenção do dono da casa que exige ir adiante ou recuar está no meio o salto desta vida para a outra; está no meio o juízo universal. A relação não está entre homem e homem, mas entre homem e Deus, e isto dá um significado totalmente diferente à parábola evangélica.

Jesus conclui a parábola:  Pois os que se exaltam serão humilhados, e os que se humilham serão exaltados. O que significa humilhar-se? Se essa pergunta fosse feita a um grupo de cristãos, teríamos talvez muitas respostas diferentes: um marido diria: não ser prepotente em casa; uma esposa diria: ser submissa estando ao lado do cônjuge; uma jovem diria: não ser vaidosa; um jovem diria: não ser preguiçoso; um sacerdote diria: falar discretamente de si, reconhecer-se pecador, … Todas as respostas que contém algo de verdade, mas pouco; são superficiais, não tocam o verdadeiro âmago do problema.

Para descobrir o que é a verdadeira humildade é preciso, como sempre, perguntar a Jesus. O Senhor diz: recebei minha doutrina porque sou manso e humilde de coração (Mt 11,29); esta frase de Jesus nos surpreende, deve nos surpreender; onde se encontra a humildade de Jesus? Em todo o evangelho não se nota, em seus lábios, nem a mínima admissão de culpa; pelo contrário, afirma com todas as letras: Quem de vós me acusará de pecado? (Jo 8,46); Jesus diz sim ao Pai: “te confesso” não significa “acuso-me”, mas “louvo-te”. Jesus é, provavelmente, o único homem que passou nesta terra sem nunca admitir ter errado, nem em seu íntimo, sem pedir perdão de nada a ninguém, nem mesmo a Deus; sua consciência é como um cristal. Esta é uma prova formidável de sua unicidade divino-humana.

E não obstante isto ele diz:  recebei minha doutrina, porque eu sou manso e humilde. Talvez a humildade seja algo diferente do que nós pensamos habitualmente. E, de fato, é o que descobrimos, se olharmos melhor a obra de Jesus. O que Jesus fez para ser humilde? Jesus se abaixou, desceu: não com palavras, ou com sentimentos, mas com os fatos. Começou quando, encontrando-se na condição divina, não considerou sua igualdade com Deus como um tesouro a ser conservado zelosamente, humilhou-se e foi obediente até a morte (cf Fp 2:6-8). Durante a vida, depois, foi sempre coerente com esta escolha: Ele, o Mestre, abaixa-se para lavar os pés dos discípulos, comporta-se como “aquele que serve”; desce, desce, desce até que – tendo chegado ao ponto mais baixo, no túmulo – chega o Pai para o apanhar, o eleva acima dos céus e o estabelece chefe do Universo, colocando tudo sob seus pés. Eis como Deus mesmo realizou sua Palavra: aquele que se humilhou será exaltado. Doravante, ser humilde significa algo muito simples: Ter os mesmos sentimentos de Cristo Jesus (cf Fp 2:5), comportar-se como Jesus se comportou.

Abre-se uma porta para que se compreenda de um modo novo o que é a humildade evangélica. A humildade é antes de tudo uma questão de fatos, de escolhas, de atitudes concretas, não uma maneira de sentir e de falar de si. A palavra usada no Novo Testamento para indicar o ato de humilhar-se (tapeinoo – gr) significa literalmente: abaixar-se, tender para baixo, fazer-se pequeno. Humildade é disponibilidade a descer de nós mesmos, abaixar-se para os irmãos, é vontade de servir, e de servir por amor, não por algum cálculo ou vantagem ou glória que possam advir para nós mesmos.

A humildade é gratuidade: isto ilumina a segunda parte do Evangelho a ser meditado, que aparentemente trata de algo bem diferente: quando oferecer um almoço – dizia Jesus – não convide os amigos, nem os irmãos, nem os parentes, nem os vizinhos ricos; convida os pobres que não tem nada para retribuir. Aqui se nota bem que a humildade evangélica é uma manifestação do ágape, isto é, do amor de doação, do qual o apóstolo São Paulo fala no famoso hino (cf 1Co 13,4); dizer que “o amor é paciente, não se ostenta, não guarda rancor” significa dizer que o amor é humilde e que a humildade é amar. Ser humilde, segundo o modelo de Jesus, significa perder-se, gastar-se gratuitamente, significa “não viver para si mesmo”, mas para os outros, isto é, não procurando levar os outros para si (reduzindo-os, quem sabe, a escravos ou a objetos para nossas vantagens pessoais), mas procurando ir ao encontro dos outros. Por isso vangloriar-se, procurar a aprovação e a glória opõem-se à humildade: porque anulam a gratuidade: já receberam a sua recompensa (Mt 6,2).

Em nós raramente ou quase nunca a humildade alcança esta forma pura; geralmente ela é remédio, reação ao orgulho, antídoto ao pecado; nós não descemos nunca de uma altura real (como fez Jesus), mas de uma falsa altura, de uma altura à qual tínhamos subido indevidamente, com o orgulho, a presunção, a ira. Em nós, portanto, a humildade é também uma virtude “negativa”, porque serve para renegar e a encobrir o que há de errado em nós; ela comporta necessariamente admissão e confissão de pecado, diversamente do que aconteceu com Jesus. Neste sentido, é verdadeiro também para nós que “humildade é verdade”. Teresa de Ávila (escritora cristã – século XVI) escreve: “Perguntava-me uma vez por que o Senhor ama tanto a humildade e me veio à mente de improviso, sem nenhuma reflexão, que isto deve ser porque ele é suma verdade e a humildade é verdade” (livro Castelo Interior). Também São Paulo fala assim da humildade:  Quem pensa ser alguma coisa, não sendo nada, engana-se a si mesmo (Gl 6,3). Ou seja: o soberbo é um mentiroso; por vezes o apóstolo apresenta a humildade como “sobriedade”, isto é, considerar a si mesmo de uma maneira sadia, justa, realista: dou a cada um de vocês a seguinte advertência: não se considerem melhores do que realmente são. Antes, sejam honestos em sua autoavaliação […] Não sejam sábios aos seus próprios olhos (Rm 12:3,16).

Em nós, portanto, a humildade apresenta aspectos de negação ou de despojamento; mas estes aspectos são secundários e são devidos ao pecado. A humildade essencial é a que descobrimos em Jesus. Mas talvez devamos dar um passo à frente até em relação a Jesus; Jesus não tinha pecados próprios de que se humilhar, é verdade, mas tinha os nossos que havia feito próprios!

A humildade em estado puro é a que se observa em Deus, na Trindade. Deus é humildade! Surpreendia-me, até a pouco tempo, ao ler numa oração de São Francisco: “Tu és trino e uno, Senhor Deus. Tu és caridade, tu és sabedoria, tu és humildade”. Perguntava-me: Mas o que significa dizer que Deus é humildade? Agora penso ter compreendido. Deus é humildade porque da posição em que se encontra não pode fazer outra coisa a não ser abaixar-se, descer; subir não pode, porque nada há acima dele!

Depois descobri que esta fora uma ideia familiar no período patrístico (séculos II ao VII d.C.), entre os pais da igreja, portanto bem antes de São Francisco; em vez de falar da humildade de Deus, eles falavam da “condescendência” (synkatabasis – gr) de Deus, que é a mesma coisa; cada vez que Deus sai de si mesmo, faz algo ad extra e se dirige ao homem faz um ato de humildade: a criação é um ato de humildade, a inspiração da Escritura, acomodar-se à linguagem humana, é um ato de humildade, Pentecostes – a “descida” do Espírito – é um ato de humildade. Cada vez que Deus vem a nós e nos visita com sua graça ele se torna “condescendente” e faz atos de humildade. A água é, então, o melhor símbolo de humildade porque, da posição em que está, tende sempre a ir para baixo, descer, ocupar o lugar mais baixo: “Louvado seja meu Senhor pela irmã água, a qual é muito útil e humilde, preciosa e casta” (São Francisco).

Deus é humildade: realmente esta é uma das definições mais felizes de Deus. Mas então descobrimos talvez o último fundamento da humildade, o “porquê” de ser necessário se humilhar: é para ser “filhos do vosso Pai”, como dizia Jesus, é para se assemelhar a Deus, para “aprender” do Pai. Em outras palavras, para que Sua vida possa correr em nós e não outra (a de Satanás que, ao invés, conhece só o movimento oposto, que é subir, escalar. Subirei até o céu […]!).

Agora podemos nos colocar, de outro ponto de vista, a pergunta: o que é a humildade? Ela é uma atitude para consigo mesmo e com os outros ou é uma atitude em relação a Deus? A resposta é a seguinte: uma e outra coisa junto! Aqui se descobre uma vez mais a insuspeita parentela entre humildade e amor: também o amor realiza-se em dois mandamentos estritamente unidos, como duas portas que se abrem e se fecham juntas: amar a Deus com todo o coração e amar o próximo como a si mesmos. O mesmo acontece com a humildade: a primeira humildade é ser humilde diante de Deus, a segunda é semelhante a esta e é ser humilde com o próximo.

Ser humilde diante de Deus – nos dizem tantos textos dos profetas, dos santos e, sobretudo, do evangelho – é ser: “os pobres de Javé”, isto é, abandonados a Ele, sem pretensões, mas confiantes diante dEle; é ser como crianças em seus braços (tornarmo-nos crianças é nosso modo de descer e abaixar-nos). Mas todas estas atitudes interiores não são autênticas (e não se sabe nunca se existem ou não) enquanto não se tornam atitudes para com os irmãos.

Poderíamos dizer, também a este respeito, o que João diz do amor: Se não és humilde com o irmão que vê, como pode ser humilde com Deus que não vê? (cf 1Jo 4:20); isto é: você não pode servir, humilhar-se, ceder diante de Deus que não tem necessidade e é diferente de ti, mas Ele se oferece a você no irmão; faz com ele o que não pode fazer com Deus; não pode lavar os pés de Deus, lava então dos irmãos!

Há pessoas – e nós estamos certamente entre elas – que são capazes de dizer de si mesmas todos os males possíveis e que deixam que Deus também o diga: confissões lindíssimas, sinceras, de indignidade e de pobreza; mas logo que um irmão se atreve a proferi-las ou mostra tomar a sério nossas confissões a Deus, aí saem faíscas. Não estamos na verdadeira humildade; a humildade é um equilíbrio entre o modo de ser com Deus (a humildade do coração) e o modo de ser com os homens (humildade dos fatos).

Não se pode ter humildade sem passar, de alguma maneira, através da humilhação. Os santos não erravam quando davam grande importância à prática da humildade, distinguindo muitos graus no caminho para ela.

O valor da humildade que procuramos descobrir aparece com a antítese mais radical da sabedoria do mundo; aqui o evangelho se situa de verdade na outra margem. O mundo exalta o orgulho, a subida, não a descida, fazer caminho à custa dos outros, não ceder aos outros. Sabemos de quem deriva esta outra lógica! Podemos provar e exemplificar esta disparidade entre a lógica evangélica e a do mundo em dois âmbitos: na vida social e na vida familiar.

Na vida social, especialmente hoje, dominam o vedetismo, o agonismo (termo filosófico para disputa, conflito), que muitas vezes ultrapassam todos os limites e se tornam agressividade e violência; abre-se caminho no trabalho, no ministério, na política, a golpes de cotovelo. Pensemos, ao invés, o que seria de uma comunidade na qual dominasse a lógica evangélica: seria, por acaso, uma comunidade de resignados, de renunciantes, de preguiçosos, sem nenhuma vibração vital? Não, cada um seria motivado a fazer render o próprio talento de inteligência, da palavra, de criatividade, mas – aqui está a diferença – o faria a serviço dos irmãos, não só para si mesmo, e para partilhar a alegria de Deus que consiste em dar: os “fortes” colocariam a sua força à disposição dos fracos e não haveria, por isso, tantas vítimas, tantos pobrezinhos marginalizados, tantos resíduos humanos.

 Na família: acho que a humildade foi inventada por Deus também para salvar os matrimônios. O orgulho, a obstinação, o individualismo são os inimigos mortais do amor, os que levam ao divórcio, antes no coração e depois na vida. Podemos dizer que a humildade é como o lubrificante que dissolve na raiz a ferrugem, os atritos; ela impede que se formem incrustações de ressentimentos e muros de silêncio que depois são muito difíceis de superar. Se alguma vez teve a tentação de dizer: por que devo ser sempre eu a ceder? Pensa quantas vezes Deus cedeu em teu favor, perdoando-o e reabrindo diálogo que você mesmo havia rompido com o pecado! Estas palavras foram escritas por Paulo para os cônjuges, mas valem para qualquer outro tipo de comunidade, inclusive a comunidade cristã:

Portanto, como eleitos de Deus, santos e amados, revistam-se de profunda compaixão, de bondade, de humildade, de mansidão, de paciência. Suportem-se uns aos outros e perdoem-se mutuamente, caso alguém tenha motivo de queixa contra outra pessoa. Assim como o Senhor perdoou vocês, perdoem também uns aos outros.

Posso afirmar então que o matrimônio muitas vezes é salvo pela humildade; devo acrescentar uma segunda observação: o matrimônio nasce da humildade! Enamorar-se de outra pessoa é o ato mais radical de humildade que se possa imaginar; significa sair de si mesmo, descer para o outro em atitude de quem implora, de mendigo, dizendo-lhe, com os fatos, mais ou menos assim: Dá-me também o teu ser porque o meu não me basta! É admitir com todas as fibras do próprio ser que o homem não basta a si mesmo, mas se completa doando-se. Deus, como se vê, inscreveu a humildade na própria carne do homem e da mulher. É preciso, porém, ficar atentos: pode acontecer, com efeito, que com o passar dos anos, e esfriando-se o amor, se tente fazer pagar ao próprio cônjuge aquele ato inicial de humildade, infligindo-lhe toda espécie de humilhações como para se vingar do fato de ter tido e de ainda ter necessidade dele; são os sinais de nossa espantosa miséria e da desordem que há dentro de nós depois do pecado. No início não era assim!

Uma última palavra sobre os “frutos da humildade”. Estes são inumeráveis e esplêndidos; a humildade é o fundamento de todas as virtudes; diz Santo Agostinho: “Quanto mais alto que queres que suba o edifício da santidade, tanto mais profundo precisas que ponhas o fundamento da humildade”. A humildade é o sal da santidade porque preserva toda virtude do perigo de se desgastar pela vanglória.

É Deus que resiste aos soberbos, mas dá graça aos humildes (cf 1Pe 5,5); Deus “olha” o humilde e o olhar de Deus é a nossa vida: É o angustiado que atrai meus olhares, o coração contrito que teme minha palavra (Is 66,2). Tudo o resto – o céu e a terra – é já de Deus, mas a humildade é um fruto delicioso que ele não pode encontrar em nenhum ponto do Universo a não ser no coração de sua criatura constituída livre.

A humildade nos torna amáveis também aos homens (também se não é por isso, naturalmente, que se deve cultivá-la). As pessoas gostam de quem é humilde, modesto, simples, desinteressado. A humildade desarma as pessoas. Os homens não compreendem a humildade, porém instintivamente compreendem e amam quem é humilde, quem tem tais qualidades descritas acima.

Há um salmo – o número 131 – que canta a paz do humilde; é um primor; vamos recitá-lo como oração final:

Senhor, meu coração não se enche de orgulho, meu olhar não se levanta arrogante. Não procuro grandezas, nem coisas superiores a mim. Ao contrário, mantenho em calma e sossego a minha alma, tal como uma criança no seio materno, assim está minha alma em mim mesmo. Israel, põe tua esperança no Senhor, agora e para sempre.