Salvação e Liberdade – Como Deus pôde confiar algo tão grande a algo tão precário?
— No entanto, vocês dizem: “O caminho do Senhor não é reto.” Então escute, ó casa de Israel: Será que é o meu caminho que não é reto? Não seriam muito mais os caminhos de vocês que são tortuosos? Se o justo se desviar da sua justiça e fizer maldade, morrerá por causa dela; na iniquidade que cometeu, morrerá. Mas, se o ímpio se converter da maldade que cometeu e praticar o que é justo e reto, ele preservará a sua vida. Pois se ele percebe o que fez e se converte de todas as transgressões que cometeu, certamente viverá; não será morto. Ezequiel 18,25-28
Os profetas estão sempre a recordar ao povo a sua responsabilidade diante de Deus. As decisões tomadas coletivamente ou decisões do governante em nome de todos, podem resultar na desgraça, como o exílio de Babilônia. Sem deixar de ter em conta esta responsabilidade comunitária, Ezequiel chama a atenção para a atitude e responsabilidade pessoal. Cada um pode decidir em relação ao seu destino e tem que responder pelas suas ações em cada momento da vida.
O tema que refletiremos é o da responsabilidade pessoal na salvação. A nossa salvação é toda obra ou dom gratuito de Deus feito ao homem. Mas a mensagem de hoje é fruto da nossa livre colaboração e de nossa liberdade. “Aquele que te criou sem a tua vontade” – diz Santo Agostinho – “não te salva se tu não queres”. Sinal dessa liberdade do homem é a sua capacidade de se converter do mal para o bem, de mau tornar-se bom e, por outro lado, a capacidade de se perverter, passando do bom para o perverso. Ninguém, portanto, está condicionado irremediavelmente na vida pelo seu passado.
O profeta admoesta o povo de Israel tendo presente a situação de seus contemporâneos, ou seja, corrigindo as ideias erradas e fatalistas que eles tinham do pecado e da salvação. No exílio, eles iam repetindo: “Os pais comeram uvas verdes, mas são os dentes dos filhos que ficam embotados?”; ou seja, nossos pais pecam e nós sofremos as consequências.
Ezequiel se opõe firmemente a esse modo de pensar. Deus não castiga os filhos pelas culpas dos pais ou os pais pelas culpas dos filhos (cf Ez 18,20). Cada um tem a possibilidade de se salvar, mas somente se o quiser; sinal disso é o perdão que Deus dá sempre e generosamente a quem decide deixar a vida do mal para converter-se a Ele de todo o coração.
No entender do povo o justo devia ser poupado porque afinal é justo. Pecou, é verdade, mas foi sempre justo e, tendo em conta o bem que fez devia ser poupado. Enquanto o pecador, sempre praticou o mal e agora é perdoado só porque se arrependeu.
Através do profeta, Deus, explica que, para ele, conta o presente e não o passado. Como se apresenta cada um, hoje, diante de Deus? O justo fez o bem, sim, mas pecou e não se arrependeu. Por isso, morreu no seu pecado. Enquanto o pecador, que praticou o mal durante toda a vida, se arrependeu e apresenta-se diante de Deus nessa condição. Por isso, é perdoado.
A expressão usada em relação ao justo “vier a morrer” significa que morre sem se arrepender e, por isso, “morre por causa do mal cometido”. O pecador, porém, se ele “se afastar do mal que tiver realizado” e passar a praticar “o direito e a justiça” essa mudança “salvará a sua vida”, porque Deus não quer a morte do pecador, mas que ele se converta e viva, como adianta o profeta uns versículos antes desta passagem.
O que vocês acham? Um homem tinha dois filhos. Chegando-se ao primeiro, disse: “Filho, vá hoje trabalhar na vinha.” Ele respondeu: “Não quero ir.” Mas depois, arrependido, foi. Dirigindo-se ao outro filho, o pai disse a mesma coisa. Ele respondeu: “Sim, senhor.” Mas não foi. Qual dos dois fez a vontade do pai? Eles responderam: — O primeiro. Então Jesus disse: — Em verdade lhes digo que os publicanos e as prostitutas estão entrando no Reino de Deus primeiro que vocês. Porque João veio até vocês no caminho da justiça, e vocês não acreditaram nele; no entanto, os publicanos e as prostitutas acreditaram. Vocês, porém, mesmo vendo isso, não se arrependeram depois para acreditar nele. Mateus 21,28-32.
Jesus explica essa verdade ao povo de sua época por meio da parábola dos dois filhos convidados pelo pai a trabalhar na vinha. Os hebreus – e em particular os fariseus – esperavam que o Messias, com sua vinda, não faria senão ratificar a situação vigente, fixando cada um em seu destino, isto é, de um lado eles, os privilegiados, o povo eleito – o filho que tinha dito sim ao pai! Os quais seriam destinados à salvação, sem nada mais a ser pago; de outra parte, todos as outras pessoas, os pagãos, ou seja, os pecadores de sua estirpe, identificados por eles com os publicanos e as meretrizes, que até então tinham dito um não a Deus.
A pergunta de Jesus “qual dos dois fez a vontade do pai?” é direta e exige uma resposta que define uma tomada de posição, o que exige uma postura de compromisso. A esta pergunta, os ouvintes de Jesus, que são os responsáveis pelo templo e a multidão a quem Jesus ensinava, incluindo os discípulos, respondem “o primeiro”.
Para fazer a vontade do pai não basta dizer ‘Senhor! Senhor!’. Não são os que dizem “Senhor! Senhor que entram no reino, mas os que escutam a palavra de Deus e a põem em prática”. Entram no reino os publicanos e as meretrizes, porque fizeram a vontade do pai escutando e dando crédito a João Batista e escutam e creem também Jesus.
Dizer ao pai “não quero”, não é uma atitude exemplar, mas o arrependimento abre um caminho para o pai. Ao passo que as palavras amáveis, sem uma decisão positiva, de nada valem diante de Deus. É necessário estar disponível para mudar a atitude diante de Deus. Os sacerdotes e os anciãos não estão disponíveis para sair da sua oposição a João e a Jesus e, com isso, ficam fora do reino.
Jesus põe abaixo este esquema cômodo colocando tudo em questão. Não basta ser filho de Abraão, não adianta apelar aos privilégios do passado. A salvação é algo pessoal e se decide na atitude que cada um assume diante de Deus e de seu anúncio. Todos são admitidos à salvação. Deus pode fazer filhos de Abraão até das pedras, isto é, dos pecadores mais insensíveis. Eis porque o publicano saiu do templo justificado diante de Deus e o fariseu, ao contrário, não.
Portanto, a salvação é oferecida a todas as pessoas. Sua eficácia ou não dependerá da livre resposta de cada um, não do status que possui ou de direitos adquiridos.
Em qualquer hipótese, a objeção é exatamente a existência dessa liberdade. Como pôde Deus confiar uma coisa tão grande como é a salvação a algo tão precário como é a nossa liberdade? Não sabia do risco que com isso corria e aquele ainda maior a que expunha as criaturas? Certo que o sabia! Mas eis como um nosso irmão, de fé ardente, imaginou a resposta de Deus: “Se não se tratasse de demonstrar o meu poder […] meu poder é bem conhecido, todos sabem que Eu Sou o Onipotente. Mas na minha criação animada, diz Deus, quis algo melhor […] Eu quis esta liberdade. Criei a liberdade. A liberdade desta criatura é o mais belo reflexo no mundo da liberdade do Criador […]. O que seria de uma salvação que não fosse livre? […]“
“Quando se sabe o que significa ser amado por pessoas livres, muitos escravos prostrados não dizem nada. Ser amados livremente é algo incomensurável, não tem preço. É certamente a minha invenção mais linda” (Charles Péguy – escritor, poeta e filósofo cristão). Assim, Deus se colocou na condição de ter de esperar de nós, de nossa liberdade, antes de pedir-nos que esperássemos em sua salvação.
Jesus, no trecho evangélico, insiste, porém, também sobre outro aspecto: sobre a concretude dessa resposta. A adesão de uma pessoa a Deus é livre, mas deve ser também concreta e eficiente. Não é quem diz “Senhor, Senhor” que entra no Reino dos Céus, mas quem faz a vontade de Deus. Não quem se contenta com pios sentimentos e devaneios, mas quem faz um esforço e traduz em gestos e fatos da vida cotidiana a vontade de Deus. Dos dois filhos da parábola, Jesus diz que prefere aquele que recusa por palavras, mas depois se arrepende e faz aquilo que o pai lhe pediu; prefere a este porque o outro diz sim ao pai, mas depois não faz nada e não vai para a lavoura trabalhar.
O arrependimento domina a reflexão que propomos, e apresenta-o como um caminho pelo qual se chega ao coração misericordioso do Pai. De fato, a mentalidade judaica entendia a sorte e a desgraça do povo eleito na dependência da resposta comunitária a Deus, na fidelidade ou infidelidade do povo à aliança, sem assinalar a responsabilidade individual, o que não é correto. Não é esta a maneira de pensar de Deus. Os vossos pensamentos estão longe dos meus pensamentos, escutávamos na meditação passada.
Israel considerava injusto que uns praticassem o mal e todos tivessem que pagar pela infidelidade de alguns. Consideravam também injusto o proceder do Senhor que castiga com a morte o justo só porque ele pecou, e perdoa o pecador só porque ele se arrende.
Deus, através do profeta Ezequiel, vem esclarecer que, todos têm no arrependimento o caminho para a vida. No entanto, justo ou pecador, todo o que não se arrepende, permanece na morte. Não é uma decisão de Deus, mas do homem. A todos Deus alerta com a palavra dos profetas para mudarem o seu modo de proceder. Por isso, todo aquele que, mesmo sendo pecador, “abrir os seus olhos e renunciar às faltas que tiver cometido, há de viver e não morrerá”.
A grande dificuldade está precisamente em escutar. No evangelho percebe-se que os sacerdotes e os anciãos tinham dificuldade em escutar e aceitar a palavra de Deus comunicada tanto por João Batista como por Jesus. Os publicanos e as meretrizes, pelo contrário, escutavam e acreditavam fazendo um caminho de conversão.
A parábola de Jesus procura ser um alerta para os seus ouvintes, entre os quais se encontram os líderes do povo, o povo simples e os discípulos, para entenderem que a relação com Deus não se consolida com palavras, por muito bonitas e cerimoniosas que sejam, mas fazendo a vontade do Pai. E a vontade do Pai é que “escutem a sua palavra e acreditem naquele que ele enviou”. As palavras cerimoniosas, sem o conteúdo da adesão à vontade do Pai, não servem para nada, pois não é quem diz “Senhor! Senhor!” que entra no reino.
Não sendo, de todo, simpática a resposta do primeiro filho, a verdade é que o arrependimento o colocou no caminho da vontade do Pai. Do mesmo modo que não é agradável o comportamento de publicanos e meretrizes, mas eles entram à frente no reino pelo caminho do arrependimento.
Esta parábola de Jesus nos deve fazer refletir atentamente e levar muito a sério nosso estilo de vida como cristãos. Sob muitos aspectos, nós estamos, com efeito, nas mesmas condições dos hebreus. Nós somos o filho a quem Deus se dirigiu primeiro chamando-o a trabalhar em sua vinha, isto é, na Igreja. Nós somos aqueles(as) que outrora disseram “sim”. Dissemos sim com o batismo e quantos outros “sim” implícitos em nossa vida cristã! Mas muitas vezes esse “sim” disfarça apenas uma recusa real e cria uma mentalidade hipócrita. O risco é que nos formamos uma psicologia de salvos por direito, de privilegiados da salvação. A psicologia, por exemplo, do filho mais velho da parábola do Filho Pródigo, o qual, tendo ficado sempre em casa, pensa que o pai lhe seja por isso devedor para sempre.
O risco é grave porque se nós descuidamos de procurar com mais diligência consolidar nossa vocação e eleição (cf 2Pe 1,10) e mediante uma contínua conversão do coração (Razão e vontade), é contra nós que se dirige a Palavra de Jesus. Os publicanos e as meretrizes nos precedem no Reino de Deus.
“Tenham entre vocês o mesmo modo de pensar de Cristo Jesus, que, mesmo existindo na forma de Deus, não considerou o ser igual a Deus algo que deveria ser retido a qualquer custo. Pelo contrário, ele se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se semelhante aos seres humanos. E, reconhecido em figura humana, ele se humilhou, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz” Filipenses 2,5-8.
Cristo, palavra do Pai, é o modelo de obediência total à vontade de Deus, ele que “não se valeu da sua igualdade com Deus, mas aniquilou-Se a Si próprio”, “humilhou-Se obedecendo até à morte, e morte de cruz”. Por isso, na comunidade cristã, diz Paulo, todos são chamados a traduzir na sua vida os mesmos sentimentos de humildade, generosidade, ternura e misericórdia que encontram em Cristo, para viverem em plena comunhão uns com os outros e com Deus.
Ele, embora Filho de Deus, não se recusou a participar das entranhas da miséria humana. Mesmo sem pecado, viveu cercado de fraquezas e compadeceu-se daqueles que as experimentavam. Agindo assim, ensina a seus filhos e filhas o itinerário da libertação percorrido na transparência de quem se reconhece pecador e se dispõe a vencer o próprio pecado, contrariando inclusive as próprias vontades mais imediatas, a exemplo do primeiro filho da parábola contada por Jesus no Evangelho.
Com esse espírito, exorta a comunidade a viver em harmonia, na fé e no amor fraterno. Não querendo ser o maior, mas o menor entre os irmãos. Não buscava o próprio interesse, mas o dos outros (Fl 2,1-5). Como Filho de Deus, podia ter escolhido o caminho do poder, mas, esvaziou-se de sua condição divina e assumiu a condição de servo. Colocou-se no mesmo chão em que vivemos. Mais ainda: Apresentou-se como quem é “manso e humilde de coração” (cf. Mt 11,29), pondo-se a serviço de todos: “Eu estou no meio de vós como quem serve” (cf. Lc 22,27). Identificou-se não com os poderosos, mas com a maioria das pessoas sujeitas à dominação, exploradas, desprezadas e marginalizadas; tornou-se solidário com todos os “crucificados” da história humana. Como o Servo do Cântico de Isaías, foi obediente até a morte de cruz. Por isso o Pai o ressuscitou dos mortos.
O caminho de Cristo tornou-se o caminho do cristão. Paulo convida os cristãos a imitar o seu modelo, Jesus Cristo. Contava com a possibilidade de ser condenado à morte; por isso, o texto que ouvimos é uma espécie de testamento espiritual.
Mas é evidente que estes programas que nos são sugeridos de fora não nos bastarão na hora da necessidade se dentro de nós alguém não nos ajudar. Por isso, no Salmo 25 o salmista, iluminado pelo Espírito Santo, ora: “Faze-me conhecer os teus caminhos, Senhor; ensina-me as tuas veredas. Guia-me na tua verdade e ensina-me, pois tu és o Deus da minha salvação, em quem eu espero todo o dia” (vss 4,5).
O “Deus da nossa salvação”, que assumiu um rosto humano em Jesus Cristo, agora vem a nós para nos propor e atualizar esta salvação. Ele espera que, por nossa vez, nós lhe doemos nossa liberdade.