Na Bíblia, Deus nos fala ora com palavras, ora com fatos; hoje refletiremos sobre a comunicação de Deus por um fato inconfundível que se chama milagre. Comecemos nossa análise bíblica com a palavra profética contida em 2 Reis 5:14-17; ela narra a cura da lepra de Naamã, o sírio, por obra do profeta Eliseu.

O poder divino, o qual se manifestou através da cura da lepra de Naamã, tinha o propósito de demonstrar que o Deus de Israel era maior que as divindades da Síria. O milagre aconteceu em benefício dos israelitas e também dos sírios. Os israelitas entenderam que Deus desejava fazer deles o seu instrumento para converter outros povos.

Também está aqui evidente o ponto de vista profético de que o reino do Norte, assim como o de Judá, estava essencialmente relacionado com o cumprimento do propósito de Deus para o seu povo.

Naamã procura ajuda em Israel (5.1-7). Podemos supor que Naamã (1) procurou primeiramente a ajuda de seu deus sírio (cf. Acazias tentou perguntar a Baal-Zebube, 1.2ss). Porque não recebeu uma ajuda dessa fonte, ele se voltou para Eliseu, o profeta do Deus de Israel. Foi feita uma referência às invasões sírias (2) para explicar a presença de uma serva israelita no lar de Naamã. Sua presteza em compartilhar a sua confiança, não só em Eliseu, mas principalmente no Deus deste profeta, foi um fator importante para a cura e a conversão de Naamã.

O registro da cura de Naamã representa um cativante relato da “cura do leproso”.

Existe aqui um retrato notável sobre: (1) A grandeza que não leva a coisa alguma – um grande homem… porém leproso, 1; (2) O testemunho da fé de uma escrava, 2-4; (3) Um pedido inesperado e humilde, 9-11; (4) Alternativas mais atraentes, 12; (5) A obediência e a cura completa, 13,14.

Recorramos ao evangelho de Lucas (17:11-19). Neste momento Jesus estava no limite entre Samaria e Galiléia. Ali dez leprosos saíram a seu encontro. Sabemos que os judeus não se comunicavam com os samaritanos, e neste grupo havia pelo menos um deles. Este é um exemplo de uma grande lei da vida. Uma desgraça comum tinha quebrado as barreiras raciais e nacionais. Na tragédia comum de sua lepra se esqueceram de que eram judeus e samaritanos e só recordavam que eram homens em necessidade.

Os dois textos em estudo apresentam uma estrutura idêntica; ambos evidenciam duas partes e dois protagonistas: a parte de Deus que intervém milagrosamente em favor do homem restituindo-lhe a saúde e a alegria, e a parte do homem, que sente a necessidade de reconhecer o benefício de Deus, de agradecê-lo e de louvá-lo. Aqui nós iremos tomar em consideração a primeira parte, a de Deus, refletindo sobre o sentido do milagre.

Então, como vimos, Naamã, um general sírio do século IX a.C., é acometido de lepra; sua escrava hebreia lhe fala do profeta Eliseu e de seus prodígios; e o rei se dirige ao profeta com grande pompa. Mas quando chega na Samaria lhe dizem que deve ir lavar-se no rio Jordão; ele obedece, embora a contragosto, considerando-se ludibriado pelo profeta; mas quando obedece sua carne volta a ser como a de um moço: está curado! O mesmo acontece no evangelho em destaque: “Jesus, Mestre, tenha piedade de nós!” Jesus os envia aos sacerdotes e, enquanto eles vão, descobrem que estão curados.

Dois milagres, portanto. Mas por que o milagre? O que Deus se propõe quando intervém de uma maneira tão clamorosa nos eventos e nas causas do mundo? Que finalidade tem o milagre? Uma finalidade muito importante!

O milagre é um sinal – aqui cabe uma explicação científica – Diversos teóricos ligados às artes visuais, linguística, entre outras áreas, dedicaram longos anos de suas vidas ao estudo da forma pela qual a nossa mente interpreta o mundo que temos à nossa volta. Há uma definição (professor Décio Pignatari) onde SINAL (ele usa o sinônimo SIGNO) como “uma coisa que equivale a outra coisa”. Parece uma definição simplista, mas ela diz muito sobre o que ela representa. Basta você lembrar que, desde a mais remota história da espécie humana, nós temos o hábito de usar palavras e imagens para registrar, em nossa memória, tudo o que está ao nosso redor. Dessa forma, palavras e imagens que são armazenadas em nosso cérebro começam a se relacionar com as “coisas de verdade”.

Já que citamos a palavra signo você pode ter associado ao zodíaco, imagine que alguém falou pra você a palavra “aquário”. É bem provável que apareça na sua mente a imagem de um recipiente de vidro com água e uns peixinhos nadando. Muito bem, essa imagem que aparece é o que chamamos de significado. Por outro lado, a parte física (grafia e som) da palavra “aquário” é o que denominamos significante. A união entre significante e significado produz o signo. Percebeu? Signo/Sinal é uma interação, uma espécie de casamento.

É essa a definição de signo que foi proposta pelo linguista e filósofo suíço Ferdinand de Saussurre (1857–1913), um dos teóricos mais referenciados da linguística. Ele defendia que nossa linguagem é um sistema de signos, altamente dinâmico, que constrói e desconstrói significados o tempo inteiro. Isso ajuda a entender como nosso vocabulário vai se transformando com o passar dos anos. Por exemplo: se o seu melhor amigo convidasse você para fazer um convescote com ele, você iria? Esse signo (“Convescote”) gera uma certa desconfiança em você, não é? Mas se você entende que essa palavra, aparentemente estranha, significa “piquenique” (confira no dicionário!), é provável que você aceite sem susto.

O que esse conceito tem a ver com o MILAGRE? Dissemos que milagre é um sinal de Deus, um meio dEle comunicar-se conosco. O sinal miraculoso que vemos é o SIGNIFICANTE; o que ele representa para nós é o SIGNIFICADO. Há um terceiro elemento no estudo linguístico que é o INTÉRPRETE. Cabe a quem lê uma passagem bíblica que retrata a experiência do milagre, de entender que o sinal do poder de Deus torna-se para o leitor e intérprete um ÍCONE, ou seja, um meio que pode nos remeter para outra realidade – a espiritual.

O milagre é uma ruptura, um rompimento na concatenação das causas naturais, que tem por fundamento a soberana e absoluta liberdade de Deus, que não pode ficar vinculada nem mesmo àquilo que ele mesmo criou, isto é, a natureza. O milagre é uma brecha que Deus abre para nos revelar a existência de outra realidade. É como quando um céu nublado é rasgado por um raio de luz que revela o sol que brilha sobre as nuvens. Não é tanto a surpresa e o estupor do homem que Deus procura com o milagre quanto a sua atenção; com ele, Deus procede como um mestre que, durante a aula, bate as mãos repentinamente com força para chamar a atenção de seus alunos quando os nota distraídos, para que se deem conta de sua presença e de que está agindo.

O milagre, sobretudo, nos anuncia alguma coisa que Deus fará no futuro: ele, com efeito, é abertura não só para aquilo que está “sobre” nós, mas mais ainda para aquilo que está em nossa “frente” – o milagre é sempre profético. Aqui está talvez a essência mesma do milagre: ele é uma antecipação, uma irrupção no tempo da realidade escatológica que nos espera. O milagre típico do evangelho é a cura da enfermidade, a vitória sobre a doença e a morte (“Pregar o Reino e curar os enfermos”, constitui, no evangelho, como que um programa único em duas partes!). O homem curado e ressuscitado voltará a adoecer e a morrer; mas, no entanto, Deus anunciou que um dia cessarão a doença e também a morte, “o último inimigo” será aniquilado (cf 1Co 15,26). Como sempre, Deus anuncia antecipadamente aquilo que fará no futuro; o faz para sustentar nossa fé e também porque sabe que o homem é “obstinado e que sua nuca é uma barra de ferro” e que, diante da novidade, está sempre pronto a exclamar. Eu já sabia! Ou a atribuí-la a algum de seus ídolos, por exemplo a sua inteligência – note o que revela o profeta Isaías (48:4-7):

Porque eu sabia que você era obstinado, que o seu pescoço é um tendão de ferro e que a sua testa era de bronze. Por isso, desde aquele tempo eu lhe anunciei essas coisas e as dei a conhecer antes que acontecessem, para que você não dissesse: ‘O meu ídolo fez estas coisas’; ou: ‘A minha imagem de escultura e a minha imagem de fundição as ordenaram.’” “Você já ouviu; agora olhe bem para tudo isto; será que você não vai admitir que falei a verdade? Desde agora lhe anuncio coisas novas e ocultas, que você não conhecia. Foram criadas agora e não há muito tempo, e antes deste dia você não tinha ouvido falar nelas, para que você não diga: ‘Sim, eu já sabia.’

Quais são as coisas novas e secretas de que o homem nem sequer suspeita para as quais Deus o vem preparando com o milagre? Na Jerusalém celeste – diz João no Apocalipse – não haverá mais nem morte, nem pranto, nem pena; tudo estará acabado; chegado às portas de sua casa, Deus enxugará toda lágrima dos olhos dos seus filhos (cf Ap 21,4). O milagre tem a finalidade de nos fazer acreditar numa promessa tão inaudita; nós cremos que Deus verdadeiramente enxugará um dia cada lágrima de nossos olhos e que nos dará a vida eterna porque, enquanto estamos ainda na carne e enquanto caminhamos na fé, o temos visto já enxugando uma lágrima e fazendo reflorescer uma vida apagada.

Deus nos preparou assim para acolher o supremo anúncio de salvação que é aquele formulado por Paulo em 2Tm 2:8-13: Jesus Cristo, descendente de Davi, ressuscitou dos mortos!” Toda aquela imensa promessa de Deus que escutamos pousa inteiramente sobre um milagre que é o máximo dos milagres de Deus: ele ressuscitou Jesus da morte! Nós cremos que Deus nos dará a vida porque ele, em Jesus, mostrou-se o Senhor absoluto da vida.

É verdade aquilo que se escreveu: “não se crê mais nos milagres porque não se crê mais o suficiente no milagre por excelência, isto é, naquela intervenção de Deus sem motivo e sem razão para a livre razão que é a ressurreição de Jesus Cristo dos mortos” (H. Schilier; americano crítico de mídia, sociólogo, escritor). É a fé na ressurreição que torna operante o Espírito do qual provém todo prodígio, todo sinal e todo poder e que unicamente permite reconhecer os milagres.

Os milagres acontencem hoje também; porém poucos – os verdadeiros crentes que são conduzidos pelo Espírito de Deus – sabem distingui-los; os outros encontram mil razões plausíveis para negá-los: possibilidade de ilusão e de engano, forças ocultas e desconhecidas, parapsicologia etc. Também no tempo de Jesus e dos apóstolos acontecia a mesma coisa: quem não estava disposto a crer achava uma desculpa para não se dobrar ao milagre: Não era cego! Fingia ser coxo para chamar a atenção das pessoas e receber uma esmola! Fez o milagre por obra de Belzebu, príncipe dos demônios!

Convenci-me desta afinidade entre a nossa situação, a propósito dos milagres, e a que havia ao redor de Jesus por ocasião de um fato. Como num sermão onde o pregador, guiado pelo Espírito, ministra a unção de cura e desafia os que creem terem sido curados a irem à frente para testemunhar. O testemunho gera ainda mais contrição, quebrantamento, alegria, louvor, que promove salvação e santificação. Quem participa desse ato de graça e misericórdia, ao sair procura descrever o que aconteceu para quem não presenciou; é como a força de um sacramento que se transmite a quem o recebe e não a quem ouve falar dele.

Concluindo, Jesus ensina através dos milagres que o poder sobre a natureza faz parte do desígnio de Deus sobre o homem, ou seja, corresponde à sua vocação. Se o homem alcança a união com o Espírito, “nada lhe será impossível”.

Como vimos até aqui, o milagre é algo bem maior do que uma simples infração da ordem natural das coisas. No milagre, revela-se a natureza mais profunda da criação, uma outra dimensão em que as leis do mundo físico são superadas e reina a liberdade. Quando uma pessoa encontra essa nova dimensão, “chegou a ela o Reino de Deus”, segundo as palavras de Cristo.

Jesus libertou seus verdadeiros discípulos da escravidão da “carne”. Ele enumerou sinais que acompanhariam os que viessem a crer: “Em meu nome expulsarão os demônios, falarão novas línguas, pegarão serpentes com as mãos, e se beberem algo venenoso, não sofrerão mal algum, imporão as mãos aos doentes e os curarão” (Mc 16:17-20). É uma missão de alcance cósmico que começou com a vida dos apóstolos e, depois deles, com todos aqueles discípulos que, movidos pela fé em Cristo, aceitarem ser conduzidos pelo Espírito ao deserto para, provados e aprovados, saírem revestidos de poder para manifestarem a glória de Deus (cf Lc 4:1-14).

A aceitação do evangelho de Jesus Cristo exige uma decisão interior, uma opção, exige a reviravolta de todos os valores da vida.

Jesus definia os seus milagres como “sinais”, manifestações do início de uma nova época. Homem perfeito, Cristo ultrapassava as leis da natureza corrompida pelo pecado e mostrava como lutar contra a imperfeição moral e física. Os seus milagres eram sempre atos concretos de amor para com os sofredores. Jesus considerava as enfermidades físicas e mentais manifestações do poder do demônio que ele viera debelar; mais ainda, via toda a humanidade submetida ao mal como um doente à espera de cura. Portanto, para ele, restituir a saúde significava combater as doenças diabólicas. Ele queria que também seus seguidores participassem dessa luta, que estendessem a mão à humanidade que sofre: “Quem crê em mim, realizará as obras que realizo e fará outras ainda maiores” (Jo 14:12). Uma vez em que os discípulos não conseguiam curar um doente, profundamente entristecido, chamou-os de “gente incrédula”.

Jesus mostrava com certa frequência o vínculo estreito que se interpõe entre o corpo e a alma. Após curar um paralítico, avisou: “Olhe, você foi curado. Não peque mais, para que não lhe aconteça coisa pior” (Jo 5:14). Uma das condições indispensáveis para readquirir a saúde era a fé do enfermo, isto é, ele devia colaborar ativamente no processo de cura. A falta de fé era um obstáculo sério para vencer a doença. Jesus exigia deles uma mudança interior radical. Os demônios são como parasitas que se desenvolvem no pecado; por isso, se o recém-curado não era preenchido logo pelo espírito da nova vida, a possessão demoníaca podia restabelecer-se com o dobro da força (cf Mt 12:43-45).

A “Lei e os Profetas”, isto é, toda a Antiga Aliança, chegavam até João Batista (cf Lc 7:28). Mas depois dele, começava uma nova época, um novo tempo em que o Reino de Deus se abre aos homens. João Batista detivera-se na fronteira entre estas duas épocas, sem poder atravessá-la; por isso Jesus disse que “o menor no Reino de Deus é maior do que ele”. Jesus sabia que a ideia de João sobre o Ungido de Deus não estava isenta da influência do messianismo terreno. Consequentemente, não podia responder-lhe: “Sim, Eu Sou aquele que tu esperaste”. Ele, o verdadeiro Messias, não era aquele que João imaginava. Não viera para comandar, mas para servir; não para castigar, mas para curar e anunciar boa nova. Ele era o Salvador e as suas obras deveriam ser testemunho do Reino.