“Acima de Jesus estava a seguinte inscrição: “Este é o Rei dos Judeus”. Lucas 23:35-43

Esse evangelho leva-nos a meditar sobre o Reino desse “Rei dos Judeus”; um reino que foi comparado a uma semente, a uma lavoura, a um tesouro escondido, a um banquete; o Reino de Deus está próximo; o Reino de Deus está no meio de vocês! Hoje, podemos dedicar a ele toda a nossa atenção.

No evangelho de Mateus encontramos a expressão “Reino dos céus”, mas se trata da mesma realidade; o evangelista escreve para os cristãos provenientes do judaísmo, por isso evita pronunciar o nome de Deus. O apóstolo Paulo usa a expressão Reino de Cristo (transportou-nos para o Reino de seu Filho amado, cf Cl 1:13), mas se trata mais uma vez da mesma realidade: o Reino de Deus se chama Reino de Cristo porque encontrou em Jesus a sua plena atuação.

As três expressões indicam, portanto, a mesma coisa: mas como se define esta realidade? O que é este Reino misterioso que não é deste mundo, que não desperta a atenção dos curiosos (cf Lc 17,21), que não faz violência, mas, ao contrário, a sofre? Podemos começar dizendo o que não é. Não é uma instituição política (que defende ideias) ou jurídica (que visa lucro ou interesses pessoais), como são os reinos humanos. Reino é aqui uma palavra ativa: significa o fato de reinar ou o senhorio de Deus. O Reino de Deus é a soberania de Deus que coincide com a vontade e com a santidade de Deus: “Venha o teu Reino” é como dizer “Seja feita a tua vontade”. Por isso ele se chama, igualmente bem, Reino da verdade, Reino do amor, Reino da santidade e da justiça. No conceito de Reino de Deus, está contida toda a força, toda a vitalidade e toda a santidade que caracterizam a imagem bíblica de Deus. Em um crente acostumado à linguagem da Escritura, ao ouvir pronunciar a expressão Reino de Deus, deveria fazer vibrar algo de grande e de indefinido no coração.

Porém, o Reino de Deus tem também um significado passivo que se refere ao homem. “Em sentido ativo” significa a vontade de Deus; “em sentido passivo” significa a aceitação desta mesma vontade que se realiza na obediência da criatura e em ordenar todas as coisas segundo a vontade e o projeto de Deus. Exatamente por isso, aliás, o Reino de Deus se tornou o Reino de Cristo, porque, em sua obediência até a morte, Jesus acolheu em si totalmente a vontade de Deus; nada ficou omisso ou incompleto; não houve, por assim dizer, resíduos passivos, mas tudo foi como que queimado em sua obediência. Realizou-se em Jesus a perfeita adequação entre os dois aspectos que constituem o Reino de Deus; por isso ele se tornou Rei e Senhor, e “a causa de Deus” com os homens se chama agora Jesus Cristo. Compreende-se por que, depois da Páscoa, os apóstolos não pregam mais o Reino de Deus, mas pregam Jesus Cristo crucificado e ressuscitado (1Co 1,23: mas nós pregamos Cristo crucificado). O que pareceu a alguns estudiosos uma anomalia e uma descontinuidade da passagem de Jesus à Igreja é, na realidade, a coisa mais clara e consequente do mundo: com a Páscoa, Jesus tornou-se para nós poder de Deus e sabedoria de Deus (cf 1Co 1,24); em outras palavras, tornou-se ele mesmo o início e o modelo do Reino. Pensando neste grandioso evento, no Apocalipse se canta: Graças te damos, Senhor, Deus Dominador, que és e que eras, porque assumiste a plenitude de teu poder real (Ap 11,17).

  • Deste Reino de Deus, do qual conhecemos agora um pouco de seu significado, o evangelho nos diz três coisas aparentemente contraditórias: Primeiro, que está perto, aliás, que já está aqui entre nós (cf Mc 1,15; Lc 17,21); segundo, que deve ainda chegar (Venha o teu Reino); terceiro, que devemos procurá-lo nós mesmos (Procurem antes de tudo o Reino de Deus).

Na realidade, todos esses três elementos são verdadeiros e atuais hoje também. O Reino de Deus está aqui no meio de nós porque Jesus está presente na Igreja com sua Palavra, com seus sacramentos e, sobretudo, com seu Espírito. A quem, depois da Páscoa, o interrogava: — Será este o tempo em que o Senhor irá restaurar o reino a Israel? Jesus respondeu: — Não cabe a vocês conhecer tempos ou épocas que o Pai fixou pela sua própria autoridade.  Mas vocês receberão poder, ao descer sobre vocês o Espírito Santo, e serão minhas testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judeia e Samaria e até os confins da terra (At 1:6-8); era como dizer que o Reino de Deus se realiza agora em toda parte onde há discípulos que, no poder do Espírito Santo, dão testemunho de Jesus.

  • Porém, é verdade também que o Reino está ainda por vir em muitos sentidos: em sentido moral e histórico, porque os homens e as instituições estão ainda bem longe de estar ordenados segundo a vontade de Deus e o modelo de Cristo; em sentido escatológico, porque nós esperamos o dia em que o Reino será cumprido e apresentado ao Pai e em que haverá novos céus e nova terra, esperamos o momento em que se dirá: “Venham, benditos de meu Pai! Venham herdar o Reino que está preparado para vocês desde a fundação do mundo.” (Mt 25,34).

Em consequência, é atual também o terceiro elemento, a procura do Reino de Deus; aliás, dos três, este é certamente aquele que nos toca mais de perto e do qual daqui para frente devemos nos ocupar. A um cristão que está apaixonado pelo Reino e que decide tornar-se alguém que busca abrem-se na frente três campos de trabalho, um mais comprometido do que o outro, mas comunicando-se entre eles e, por assim dizer, concêntricos, de modo que o trabalho feito em um acaba contribuindo para o crescimento dos outros dois.

O mais vasto de todos é o campo chamado “mundo”. Este deve tornar-se, de fato, o que já é de direito, a partir da ressurreição de Cristo, ou seja, “o mundo do Senhor nosso Jesus Cristo”. Quando Paulo diz que a criação aguarda ansiosamente a manifestação dos filhos de Deus […] com a esperança de ser também ela libertada do cativeiro da corrupção (Rm 8:19-21), é como se dissesse que o mundo inteiro espera tornar-se o Reino. Quantos projetos para melhorar o mundo; mas o mundo precisa, sobretudo, de uma coisa, da qual depende todo o resto: ser libertado do pecado! Porque o pecado é a única coisa que não faz parte da estrutura originária da criação, mas lhe foi inoculado do exterior, contra a sua vontade, diz Paulo, da má vontade do homem. São, porém, verdadeiros “operadores do Reino” aqueles que, conscientemente ou não, trabalham para diminuir o peso do pecado no mundo, lutando por uma política mais humana, por uma informação mais honesta, por uma sociedade mais justa e por uma cultura mais respeitosa da dignidade do homem.

O segundo campo é a Igreja. Dizer que se precisa procurar na Igreja o Reino de Deus não é dizer uma redundância ou uma heresia; é dizer que é preciso se esforçar para fazer prevalecer nela a obra de Deus sobre a do homem. Também a Igreja deve tornar-se de fato o que já é de direito, isto é, um “Reino de Sacerdotes”, um fermento na massa, obra de todos. A diferença entre a Igreja e o mundo não é que uma pertence a Cristo e o outro, não; mas que a Igreja sabe que lhe pertence, e o mundo não. Para quem está consciente de ter sido transferido para o Reino da luz surge uma nova exigência, que é coerência, caminhar como filhos da luz (cf Ef 5,8). Na Igreja devemos agir de tal modo que resplandeça a soberania de Deus na obediência do homem, de modo que ela realize a todo mundo o Reino de Deus.

O terceiro e último campo no qual procurar o Reino de Deus é o que se refere a nossa pessoa, a nossa existência. Chegamos, assim, no ponto em que nossa reflexão de hoje toca a própria vida cotidiana e nos questiona de perto. O que significa procurar o Reino de Deus na própria vida? É difícil definir em poucas palavras. Negativamente São Paulo o expressa assim: Não reine, pois, o pecado em vosso corpo mortal (Rm 6,12); o Reino de Deus inicia em nós lá onde acaba o reino do pecado. É assim que devemos imaginar concretamente e quase visivelmente o crescimento do Reino de Deus em nós; como uma pequena luz de um exército que avança com dificuldade, lutando para vencer o exército invasor das trevas que está sempre pronto a retomar o terreno perdido; como a nova criatura que luta contra o velho homem; como Davi que luta contra o Golias. Às vezes, em momentos de tentação (por exemplo, na raiva), não é difícil experimentar em si, quase fisicamente, esta luta: há algo de tenebroso que sobe do fundo de nós mesmos e nos ofusca o olho, a mente e o coração; também quem nos observa percebe que há em nós algo que não é bom, simplesmente olhando nosso olho. É a guerra entre “as duas leis” que é também a guerra entre dois reinos (cf Rm 7,22-23). Esta é a divisão e a espada que Jesus disse ter vindo trazer à terra (cf Lc 12,51): uma divisão boa, também se faz sofrer, porque leva ao predomínio do espírito sobre a carne, da liberdade sobre a escravidão.

Procurar o Reino de Deus em nossas vidas significa também, positivamente, “crescer no amor” (cf 1Ts 3,12), porque o amor é a substância e o resumo do Reino de Deus. Quem ama o irmão está na luz (cf 1Jo 2,10) e já está no Reino! Dentro dele se celebra, em espírito e em verdade, a adoração genuína. O que os outros evangelistas chamam de Reino de Deus, João o chama “Vida”, por isso ele pode dizer: Nós sabemos que já passamos da morte para a vida, porque amamos os irmãos. Quem não ama permanece na morte (1Jo 3,14).

O escritor e teólogo Donald B. Kraybill, em seu livro “O Reino de ponta cabeça”, ilustra muito bem esse desafio e missão de crescermos em amor no Reino de Deus:

Nós carregamos tabuleiros de damas sociais em nossas mentes. À medida que encontramos pessoas, as classificamos em caixas sociais. Na falta de informações detalhadas, simplesmente as jogamos em caixas com base em aparência externa. Elas são brancos, orientais, desarrumadas, formais, um enfermeira, um motorista de caminhão. Outros fragmentos de informação nos permitem rotulá-los: fundamentalistas, budista, carismático, pacifista, agricultor, viciado em droga, gay.

Além de rotular as pessoas, generalizamos sobre todos em uma caixinha específica. Em outras palavras, nós estereotipamos. Assumimos que uma pessoa em particular se comporta de acordo com nossa visão de todos naquela caixa. Assumimos que os carismáticos tentam fazer com que as pessoas falem em línguas. Os liberais teológicos, é claro, não acreditam no nascimento virginal. Os porto-riquenhos são preguiçosos. Os asiáticos são inteligentes. Os fundamentalistas não se importam com a justiça social. Os liberais são fiscalmente conservadores. Os social-democratas pegam mais leve na defesa nacional. Judeus são severos. Pessoas ricas são indiferentes e insensíveis. Os vendedores são ardilosos. As mulheres são emocionais. Os adolescentes são irresponsáveis. Os pais são rígidos. Vez após vez colocamos estereótipos.

Jogos de damas social é perigoso e mortal. Nós facilmente colocamos as pessoas na caixa errada. Nossos rótulos, muitas vezes, vêm do mito, em vez do fato. Mesmo que um estereótipo seja parcialmente verdadeiro, ele pode não se encaixar em uma determinada pessoa. Classificar as pessoas assim, não só prejudica os outros, como restringe o nosso comportamento. Relacionamo-nos com os outros por rótulos em vez de conhecê-los como pessoas reais. Nós podemos evitar certas pessoas porque seus rótulos dizem o surdo, o presidiário, o socialista, o deficiente, a prostituta, o rico, o homossexual, ou o branco. Colocar as pessoas em caixinhas não é inteiramente prejudicial, no entanto. Isso ajuda a estabilizar a vida social, tornando-a ordenada e previsíveis.

Jesus joga um novo jogo de damas sociais. Ele é o modelo de formas criativas de entrar nas caixinhas. Ele cruza as linhas. Ele caminha sobre fronteiras e lida com pessoas reais. Ele passa através das barricadas sociais. Andando pelo tabuleiro do seu tempo. Ele desconsidera os sinais de “Não ultrapasse” e “Entrada proibida” pendurados no pescoço de muitos.

Jesus ignora as normas sociais que explicam quem, quando e onde deve ocorrer a interação social. Na verdade, quando os herodianos e fariseus tentam pegá-lo com uma pergunta sobre a questão dos impostos, eles antecedem a sua pergunta complicada com uma lisonja: “Mestre, sabemos que és íntegro e que não te deixas influenciar por ninguém, porque não te prendes à aparência dos homens, mas ensinas o caminho de Deus conforme a verdade” (Mc 12:14; ênfase adicionada). Em outras palavras, Jesus ignorava as caixinhas sociais. Ele ignorou os rótulos culturais e invadiu os quadrados sociais…

A formação de subgrupos não é de todo ruim. Mesmo os pássaros maduros com plumagem semelhante precisam voar juntos. Ganhamos segurança em círculos comuns. Porém, também precisamos transformar nossos grupos sociais. Eles nos oferecem a segurança necessária, mas também podem fragmentar a vida da congregação. Eles podem se tornar grupos exclusivos – panelinhas à liderança pastoral, aos edifícios, à teologia, ao currículo educacional e outros semelhantes muitos vezes resultam da lealdade a subgrupos…

Embora Jesus estivesse no tabuleiro social de seu tempo, Ele também tinha um círculo interno, de três amigos. Pedro, Tiago e João testemunharam a transfiguração e achegaram-se intimamente a Jesus no Getsêmani. Nós também precisamos da comunhão próxima com outros semelhantes, enquanto usamos nossos dons especiais para ministrar a todo o corpo. Precisamos de uma tensão saudável entre nossa tendência natural de aconchegar-se com outros semelhantes e o espírito de Jesus que aceita os outros, independentemente do seu status social.

Na genialidade do evangelho, quando as pessoas declaram Jesus como Senhor, experimentam uma nova unidade que transcende as caixas sociais. O verdadeiro crescimento da igreja usa as melhores ideias da ciência social para chamar diferentes tipos de pessoas a estarem juntas sob um Senhor comum. Um evangelho que só atrai pessoas semelhantes embaça a boa notícia que liga judeus e gentios, homens e mulheres, negros e brancos.

Até que nós estejamos inteiramente submissos a Cristo, o Senhor não pode se submeter inteiramente ao Pai; há uma espécie de atraso, uma suspensão e um sofrimento do universo. O Pai espera que esse momento porque ele criou todos os mundos e colocou em ação toda a história da salvação – “E digo a vocês que, desta hora em diante, nunca mais beberei deste fruto da videira, até aquele dia em que beberei com vocês o vinho novo, no Reino de meu Pai” (Mt 26,29). Enquanto nós não agimos de modo a subir ao Reino, ele não poderá beber sozinho este vinho; ele, que prometeu bebê-lo conosco. Permanece, portanto, na tristeza por todo o tempo que nós persistimos na iniquidade. Somos, em vista disso, a causa do atraso de sua glória. Enquanto eu não estiver submisso ao Pai, não se pode igualmente que ele seja submetido. Não quer receber sem ti sua plena glória.

  • Por começar o Advento, retomaremos o caminho para um novo ano de graça; fixemos o olhar nos céus. É de lá que ansiosamente esperamos o Salvador, o Senhor Jesus Cristo, que transformará nosso mísero corpo, tornando-o semelhante ao seu corpo glorioso, em virtude do poder que tem de sujeitar a si toda criatura (Fp 3:20,21). Nossos primeiros irmãos na fé possuíam uma palavra que, dependendo da forma como era pronunciada, expressava ora a certeza da presença do Reino no meio deles, ora a esperança de sua volta: Maran-atha: o Senhor está aqui! Maraná-tha: Vem, Senhor