O Espírito Santo eleva o homem acima de si mesmo, para que experimente a presença de Deus e descubra seu amor
“Por esse tempo, Jesus foi da Galileia para o rio Jordão, a fim de que João batizasse. João, porém, quis convencê-lo a mudar de ideia, dizendo: — Eu é que preciso ser batizado por você, e é você que vem a mim? Mas Jesus respondeu: — Deixe por enquanto, porque assim nos convém cumprir toda a justiça. Então ele concordou. Depois de batizado, Jesus logo saiu da água. E eis que os céus se abriram e ele viu o Espírito de Deus descendo como pomba, vindo sobre ele. E eis que uma voz dos céus dizia: — Este é o meu Filho amado, em quem me agrado” Mateus 3,13-17
O batismo de Jesus foi uma etapa decisiva na manifestação do Cristo ao mundo como Deus: uma espécie de segunda Epifania. Os acontecimentos do nascimento estavam longe, velados nos corações de poucos protagonistas daqueles dias em Belém. Trinta anos de silêncio e de vida oculta transformaram Jesus em um homem entre outros homens. Os anos antes do Batismo, diz um autor antigo, demonstram a humanidade de Jesus em tudo semelhantes à nossa (Melitão de Sardes).
Quando Jesus chega ao Jordão, têm atrás de si a profunda experiência da infância e dos longos anos de crescimento “em sabedoria, em estatura e em graça diante de Deus e dos homens” (Lc 2,52). Está viva nele a consciência de sua enorme tarefa e das forças que emergem de insondáveis profundidades. Mas o primeiro gesto que vemos nele e as primeiras palavras que pronuncia são de humildade. Nem sinal de pretensão de ser um personagem excepcional, que poderia dizer: “Isso vale para os outros, não para mim!” Ele se apresenta a João e pede o batismo. Pedi-lo significa aceitar as palavras do Batista e reconhecer-se pecador, estar contrito e abrir-se ao que pode vir de Deus. Por isso se entende que João, assustado, resista. Mas Jesus entra na fila. Não reivindica nenhuma exceção, mas se submete à vontade de Deus, a “justiça” que vale para todos.
A essa descida às profundezas humanas responde a intervenção do alto. Os céus se rompem. A barreira que nos separava do Deus onipotente em seu céu, em sua bem-aventurada existência autossuficiente – isto é, o próprio homem em sua condição de criatura decaída, cuja queda arrastou consigo o mundo e trouxe como consequência uma vida condenada “à servidão da corrupção (Rm 8,20) – essa barreira se abre. Produz-se um encontro infinito. No coração humano de Jesus irrompe a plenitude aberta do Pai. E isso acontece, como diz o Evangelho de Lucas, “enquanto Jesus está em oração, o que parece indicar que se trata de um processo interior (3,21). Nem por isso deixa de ser real; mais real que todas as realidades tangíveis que o rodeiam; mas é um processo interior, isto é, “no espírito”.
O Espírito Santo eleva o homem acima de si mesmo, para que experimente a presença de Deus, o Santo, e descubra seu amor. A plenitude deste Espírito vem sobre Jesus. Já falamos do mistério de que precede a existência de Jesus: que ele é o Filho de Deus, da mesma essência de Deus; que traz em seu ser, corporalmente, a divindade; que esta o penetra e o ilumina. Mas ao mesmo tempo ele é também verdadeiro homem, em tudo igual a nós, menos no pecado. Por isso cresce, progride “em sabedoria, em estatura e em graça diante de Deus e dos homens”; não somente “diante dos homens”, mas também “diante de Deus” … Aqui se adensa o mistério: ele é o Filho do Pai. O Pai está “sempre com ele”; mais ainda, “está nele, como ele está no Pai” (Jo 14,10-12). Suas obras são realizadas pelo poder do Pai. Este poder está patente aos seus olhos. Ele o “vê”. Mas ao mesmo tempo se diz que ele “entra” no tempo, a partir do seio do Pai, e “volta” de novo a ele, até a enigmática palavra que pronunciará na cruz sobre o abandono de Deus (Mt 27,46).
Por isso, também, o Espírito está sempre nele, pois o Espírito é o amor em virtude do qual ele e o Pai vivem um no outro, e é a potência pela qual ele se fez homem. E no entanto, o Espírito “desce” agora sobre ele, assim como ele, mais adiante, o “enviará” aos seus a partir do Pai. Aqui o nosso pensamento se vê impotente, embora pressinta uma realidade acima de toda realidade, e uma verdade além de toda verdade. Mas nem por isso deve entregar-se a um pseudoconhecimento, a sentimentos e palavras por trás das quais não há nenhuma substância.
- Tudo isso é mistério, o mistério de Deus uno e trino em sua relação com o Filho de Deus feito homem. Nós não podemos penetrá-lo, e o reconhecimento dessa impotência deve presidir a tudo o que se possa dizer sobre a existência de Jesus.
O poder do Espírito vem sobre Jesus; e nesse encontro transbordante, na plenitude divina desse momento, ressoa a palavra do amor paternal que, no evangelho de Lucas, aparece como interpelação direta: “Tu és o meu filho amado, em quem me comprazo” (Lc 3,22). E assim, “Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão; e o Espírito o foi conduzindo através do deserto” (Lc 4,1).
- O Batismo conclui esta etapa de vida de Jesus, conclui seu tornar-se semelhante ao homem, sua imitação de homem. Ele vem, confundido na multidão, para se submeter ao rito que o coloca na fila dos pecadores, daqueles que tem necessidade de se purificar.
Este é o Jesus anunciado por Isaías (42,1-4; 6-7):
Eis aqui o meu servo, a quem sustenho; o meu escolhido, em quem a minha alma se agrada. Pus sobre ele o meu Espírito, e ele promulgará o direito para os gentios. Não clamará, não gritará, nem fará ouvir na praça a sua voz. Não esmagará a cana quebrada, nem apagará o pavio que fumega; com fidelidade, promulgará o direito. Não desanimará, nem será esmagado até que estabeleça na terra a justiça; e as terras do mar aguardarão a sua doutrina. Eu, o Senhor, chamei você em justiça; eu o tomarei pela mão, o guardarei, e farei de você mediador da aliança com o povo e luz para os gentios; para abrir os olhos dos cegos, para tirar da prisão os cativos, e do cárcere, os que jazem em trevas.
O servo de Deus que não clama nem levanta a voz, nem se faz ouvir pelas ruas … Jesus, o manso de coração, vem chamar os pecadores ao arrependimento, mas vem chamá-los com a misericórdia. O Jesus que escandalizou e decepcionou aqueles que esperavam um Messias guerreiro, o furioso portador da ira de Deus, especialmente contra os pagãos. O Jesus que irá surpreender também seu precursor: “És tu aquele que deve vir?
O apóstolo Paulo resumiu este aspecto da vida de Cristo com o célebre texto de Filipenses 2,6-7: “Sendo ele de condição divina, não se prevaleceu de sua igualdade com Deus, mas aniquilou-se a si mesmo, assumindo a condição de escravo e assemelhando-se aos homens”. Como um homem qualquer, tal era Jesus que veio ao Jordão para ser batizado.
Assim, podemos entender que o objetivo do batismo de Jesus foi o mesmo do nascimento, a saber, identificar-se com a humanidade pecadora. Isaías não previra que Ele se deixaria “colocar entre os criminosos” (Isaías 53,12)? Com efeito, Nosso Senhor estava a dizer: “Sofro isso para que se cumpra; não vos parece apropriado, mas, em verdade, está em completa harmonia com o propósito de minha vinda”. Cristo não estava como pessoa privada, mas como representante da humanidade pecadora, embora Ele mesmo não tivesse pecado.
Todo israelita que chegava a João fazia uma confissão dos pecados. É evidente que Nosso Senhor não fez confissão alguma, e o próprio João admitiu que não tinha necessidade de fazê-la. Não tinha pecados de que se arrepender e nenhum pecado a ser expiado. Entretanto, ao mesmo tempo, identificava-se com os pecadores. Quando foi até o rio Jordão para ser batizado, fez-se um com os pecadores. O inocente pode partilhar os fardos dos pecadores. Se um marido é culpado de um crime, é inútil dizer à mulher que não se preocupe com isso ou que isso não lhe diz respeito. É igualmente absurdo dizer que Nosso Senhor não deveria ser batizado porque não tinha culpa pessoal. Se tinha de se identificar com a humanidade, tanto assim que se denominou “Filho do Homem”, então tinha de partilhar a culpa da humanidade. E esse foi o significado do batismo feito por João.
Muitos anos antes, Ele dissera que deveria estar prestes a realizar as coisas do Pai; agora começava a revelar quais seriam os assuntos do Pai: a salvação da humanidade. Expressava o relacionamento com seu povo, em cujo nome fora enviado. No templo, aos 12 anos, a ênfase estivera em Sua origem; agora, no Jordão, era a natureza de Sua missão. No templo, falara do mandato divino. Sob as mãos purificadoras de João, tornou clara Sua unidade com os homens.
Mais tarde, diria Nosso Senhor: A lei e os profetas duraram até João. (São Lucas 16,16).
Indicava que os longos séculos foram testemunha fiel da vinda do Messias, mas, naquele momento, fora virada uma nova página, fora escrito um novo capítulo. De agora em diante, Ele se amalgamaria com o povo pecador. Empenhar-se-ia, dali em diante, a viver e exercer o ministério entre as vítimas do pecado; a ser traído nas mãos dos pecadores e a ser acusado de pecado, embora soubesse não ter pecado. Assim como foi circuncidado na infância, como se Sua natureza fosse pecadora, do mesmo modo, agora, seria batizado, ainda que não precisasse de purificação.
Havia três ritos no Antigo Testamento que eram uma espécie de batismo. O primeiro era um “batismo” de água. Moisés levou Aarão e seu filho às portas do tabernáculo e os banhou com água. Isso foi seguido por um “batismo” de óleo quando Moisés derramou óleo sobre a cabeça de Aarão para santificá-lo. O “batismo” final foi de sangue. Moisés tomou o sangue do cordeiro da consagração e o derramou sobre a orelha direita de Aarão, sobre o polegar da mão direita e sobre o dedão de seu pé direito. Esse ritual sugeria uma consagração gradual. Esses batismos teriam a contrapartida no Jordão, na Transfiguração e no Calvário.
O batismo do Jordão foi o prelúdio do batismo que mencionaria depois, o batismo da Paixão. Posteriormente, por duas vezes, viria a referir-se ao Seu batismo. A primeira vez foi quando Tiago e João perguntaram-Lhe se poderiam sentar ao lado Dele no Reino. Em resposta, perguntou-lhes se estavam prontos para ser batizados com o batismo que Ele receberia. Assim, o batismo pela água antecipava o de sangue. O rio Jordão fluiu para os rios escarlates do Calvário. A segunda vez que se referiu ao batismo foi ao dizer aos apóstolos: “Mas devo ser batizado num batismo; e quanto anseio até que ele se cumpra!” (São Lucas 12,50).
- Nas águas do Jordão, identificou-se com os pecadores; no batismo de Sua morte, suportaria todo o peso dos pecados. No Antigo Testamento, o salmista fala de “entrar em águas profundas” como um símbolo do sofrimento que é, obviamente, a mesma imagem. Há conveniência em descrever a agonia e a morte como uma espécie de batismo.
A cruz deveria estar vindo ao pensamento, agora, com vivacidade cada vez maior. Não havia uma reflexão posterior em seu pensar. Esteve temporariamente imerso nas águas do Jordão apenas para emergir de novo. Da mesma maneira, seria imerso pela morte na cruz e o enterro no sepulcro apenas para emergir triunfante na ressurreição. Proclamara a missão dada pelo Pai aos 12 anos; agora, preparava-se para a oblação.
“Depois que Jesus foi batizado, saiu logo da água. Eis que os céus se abriram e viu descer sobre ele, em forma de pomba, o Espírito de Deus. E do céu baixou uma voz: Eis meu Filho muito amado em quem ponho minha afeição” (São Mateus 3,16).
A humanidade sagrada de Cristo era o elo entre o céu e a terra. A voz dos céus que O declarou Filho muito amado do Pai Eterno não anunciava um fato novo ou uma nova filiação de Nosso Senhor. Simplesmente, fazia uma declaração solene daquela filiação, existente desde a eternidade, mas que agora começava a se manifestar em público como mediador entre Deus e o homem. O apreço do Pai, no original em grego, é registrado no tempo verbal aoristo, para denotar o ato eterno de contemplação amorosa com que o Pai olha para o Filho.
O Cristo que saiu das águas, como a terra saiu da água na criação e depois do dilúvio, como Moisés e seu povo saíram das águas do Mar Vermelho, foi agora glorificado pelo Espírito Santo aparecendo na forma de uma pomba. O Espírito de Deus nunca aparece na forma de uma pomba em nenhum outro lugar a não ser aqui. O Livro do Levítico menciona oferendas que eram feitas segundo a posição econômica e social do doador. Um homem que pudesse dispor traria um boi e um homem pobre ofereceria um cordeiro; porém, o mais pobre de todos tinha o privilégio de levar pombinhas. Quando a mãe de Nosso Senhor o levou ao templo, sua oferta foi uma pomba. A pomba era o símbolo da gentileza e da paz, mas, sobretudo, era o tipo de sacrifício possível para as pessoas mais pobres. Sempre que um hebreu pensava em um cordeiro ou uma pomba, imediatamente pensava em um sacrifício pelo pecado. Assim, o Espírito descendo sobre Nosso Senhor foi para eles um símbolo de submissão ao sacrifício. Cristo já tinha se unido, simbolicamente, ao homem no batismo, em antecipação à submersão nas águas do sofrimento, mas, agora, também foi coroado, dedicado e consagrado àquele sacrifício pela vinda do Espírito. As águas do Jordão se uniram aos homens, o Espírito o coroou e o consagrou ao sacrifício, a voz atestou que o Seu sacrifício seria agradável ao Pai Eterno.
As sementes da doutrina da Santíssima Trindade que foram plantadas no Antigo Testamento começaram, nesse momento, a se desenvolver. Elas se tornariam mais claras com o passar do tempo: o Pai, o Criador; o Filho, o Redentor; e o Espírito Santo, o Santificador. Aqui, as próprias palavras ditas pelo Pai —, “Eis meu Filho” — foram endereçadas profeticamente ao Messias, milhares de anos antes, no Salmo 2: “Tu és meu filho, eu hoje te gerei” (Salmos 2,7).
Nosso Senhor diria a Nicodemos, mais tarde: ”Em verdade, em verdade te digo: quem não renascer da água e do Espírito não poderá entrar no Reino de Deus” (São Marcos 3,5).
- O batismo do Jordão encerra a vida privada de Nosso Senhor e dá início ao Seu ministério público. Imergira nas águas conhecido pela maioria dos homens somente como o filho de Maria; saiu pronto para revelar-se como era desde toda a eternidade, o Filho de Deus. Era o Filho de Deus, semelhante a todos os homens, exceto no pecado. O Espírito O ungira não só para ensinar, mas para redimir.
Mas o Batismo inaugura também a nova fase da vida de Jesus. E é o Pai que o apresenta oficialmente ao mundo, como o Messias que fala e age com autoridade em seu nome. Começa agora a vida pública de Jesus. Aqui começam aquelas expressões “mas eu vos digo” e aquele “falar com autoridade” que deixarão atônitos os escribas e fariseus. Nos evangelhos mais antigo como o de Marcos, daqui começa a narrativa do Evangelho. Também Pedro (At 10,34-38) faz do Batismo de Jesus o início de sua história: foi no Batismo, com efeito, que Deus “consagrou no Espírito e no poder Jesus de Nazaré.
Por que toda esta importância? Antes de tudo, ela está ligada à manifestação do Espírito. João Batista havia caracterizado as duas épocas assim: eu vos batizo com água, ele vos batizará no Espírito. A descida do Espírito Santo é o ponto de partida da redenção. Mas vem a hora, e já chegou, em que os verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e em verdade, e são esses adoradores que o Pai deseja (Jo 4,23). O Espírito já tinha descido em Jesus de Nazaré por ocasião de seu nascimento. Ele já descera a Maria na anunciação, antes mesmo da descida no Jordão. Mas lá tinha sido um acontecimento no silêncio; aqui no Jordão o Espírito se manifesta ao mundo. A missão profética e messiânica de Jesus se manifesta ao mundo. Em seu Batismo Jesus aparece como o esperado sobre o qual pousou o Espírito do Senhor, como fora escrito pelo profeta Isaías.
Além da manifestação do Espírito a importância do Batismo está ligada à solene proclamação do Pai: “Este é meu Filho amado, no qual eu pus o meu agrado. Ouvi-o”. Aquele que se proclamara servo agora é proclamado filho (cf Is 40,2). É a este ponto que precisa retomar a leitura do texto de Paulo aos Filipenses: Por isso, Deus o exaltou soberanamente e lhe outorgou o nome que está acima de todos os nomes (Fp 2,9). É o ponto mais alto da Epifania; não mais uma estrela, mas a mesma voz do Pai revela aos homens quem é Jesus de Nazaré: o Filho amado do Pai. Jesus confirmou o sentido dessa declaração, chamando a Deus constantemente com o nome de Abba, Pai. Pelo que Jesus diz e faz se vê que ele tem claramente a consciência de ser o Filho de Deus. O Evangelho, sobretudo o de João, nos mostra Jesus num diálogo ininterrupto com o Pai, um Jesus que continua o que já existia no seio da Trindade. Toda a nossa fé está ancorada nesta consciência de Jesus. Ele que era filho natural se fez nosso irmão. A nós não interessa se aqueles que viveram tiveram consciência desse segredo desde o início e compreenderam sua importância. O que interessa realmente é saber que Jesus estava consciente e deixou provas seguras durante a vida terrestre.
A consequência desta revelação está nas palavras do Pai: Ouvi-o! (Mc 9,7). Devemos ouvir Jesus que nos fala ainda hoje em seu Evangelho. A ideia central da Epifania é que Deus primeiro veio ao encontro do homem, mas o homem deve ir ao encontro de Deus através da fé. Nós o acolhemos hoje com as mesmas palavras com que João Batista o acolheu no Jordão: “Eis o cordeiro de Deus, eis aquele que tira o pecado do mundo”.