“Então Jesus disse mais uma vez:

— Em verdade, em verdade lhes digo que eu sou a porta das ovelhas. Todos os que vieram antes de mim são ladrões e salteadores, mas as ovelhas não lhes deram ouvidos. Eu sou a porta. Se alguém entrar por mim, será salvo; entrará, sairá e achará pastagem. O ladrão vem somente para roubar, matar e destruir; eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância”. João 10,7-10

Filósofos, cientistas e sábios com frequência reivindicam a superioridade de seus respectivos sistemas. Não é de surpreender, portanto — visto que assim Nosso Senhor como os fariseus eram mestres —, que houvesse uma disputa entre eles quanto às doutrinas. Mas Jesus, como sempre, recusou-se a se colocar no mesmo nível que os mestres humanos; reclamou singularidade como Mestre Divino. No entanto, foi além. Veio para sacrificar a Si mesmo em favor de Suas ovelhas, não para ser Mestre de Seus pupilos. Os fariseus e Jesus discutiram acerca de Suas doutrinas. De um lado, chamou a Si mesmo de Porta que dava acesso exclusivo ao Pai; o porteiro ou o cuidador do aprisco; chamou a Si mesmo também de Pastor ou guardador das ovelhas, e por fim Ele era o Cordeiro que viria a tornar-se vítima. Do outro lado, comparou os fariseus àqueles que não entram pela porta e que, portanto, buscavam roubar o rebanho; e a mercenários que correriam quando viessem os lobos; e, por fim, a lobos que devorariam as ovelhas. 

A disputa surgiu depois que Nosso Bendito Senhor restaurou a visão a um cego de nascença. Os fariseus começaram a fazer uma investigação do milagre. Não havia dúvida de que o cego agora podia ver; os fariseus, no entanto, estavam tão convencidos de que isso não devia ser considerado milagre que procuraram os pais do garoto, que confirmaram que ele nascera cego. Já tinham o próprio juízo, de modo que nenhum fragmento de evidência podia mudar-lhes a opinião, 

pois os judeus tinham ameaçado expulsar da sinagoga todo aquele que reconhecesse Jesus como o Cristo. (São João 9,22) 

O cego de nascença, portanto, foi o primeiro de uma longa lista de confessores que Nosso Senhor disse que seriam expulsos das sinagogas. Os fariseus, ao encontrarem aquele cego, disseram que Cristo não podia ter feito isso porque “Ele é um pecador”. Quando aquele que era cego ficou impaciente com as perguntas dos fariseus e com a recusa de aceitar a evidências dos sentidos, argumentou contra eles: 

Se esse homem não fosse de Deus, não poderia fazer nada. (São João 9,33) 

O pedinte era muito mais sábio em seu entendimento do milagre do que os fariseus, assim como José foi muito mais sábio do que os supostos sábios do Egito na interpretação do sonho de Faraó. O progresso no pensamento e na fé do homem cego foi semelhante àquele da mulher do poço. Primeiro, o cego disse a respeito Dele: 

Aquele homem que se chama Jesus. (São João 9,11) 

Mais tarde, depois de ser ainda mais questionado, disse, como o fizera a mulher do poço: 

É um profeta. (São João 9,17) 

Por fim, ele declarou que o Senhor devia ter vindo de Deus. Esse é geralmente o percurso daqueles que enfim chegam à verdade acerca de Cristo. Quando o homem curado confessou que Cristo era o Filho do Deus, os fariseus excomungaram-no da sinagoga. Isso foi grave; pois privava o pedinte dos privilégios externos da comunidade do povo e o tornava objeto de escárnio. Tendo tomado conhecimento da excomunhão, Nosso Senhor, incansável até que encontrasse a ovelha perdida, procurou o homem condenado. Encontrando-o, perguntou-lhe: 

Crês no Filho [de Deus]? (São João 9,35) 

E o pedinte respondeu: 

Quem é ele, Senhor, para que eu creia nele? (São João 9,36) 

Nosso Senhor respondeu da mesma maneira que o fez à mulher do poço: 

Tu o vês, é o mesmo que fala contigo! (São João 9,37) 

Então o homem que fora cego prostrou-se diante do Senhor em adoração. Sua fé não era aquela que se confessa com os lábios, mas a que adora à Verdade Encarnada. Seu raciocínio foi simples e, ainda assim, sublime. Aquele que podia operar tal milagre devia ser de Deus. Então, se Ele era de Deus, Seu testemunho havia de ser verdadeiro. 

Os fariseus tinham feito uma investigação completa do milagre; não havia dúvida entre as testemunhas; os pais e o homem mesmo reconheceram que um grande milagre havia sido feito: um milagre aos olhos, ao restaurar-lhes a visão, e um milagre à alma, ao dar-lhe a fé em Cristo. Como os fariseus rejeitavam a evidência, Nosso Senhor disse-lhes que eram líderes cegos e que, porque o tinham rejeitado, o juízo cairia sobre eles. Disse-lhes que tiveram uma chance de ser iluminados por Ele mesmo, a Luz do Mundo. Sem essa iluminação, a cegueira podia ser uma calamidade; agora, no entanto, era um crime. 

Tinham fechado a porta da sinagoga ao cego de nascença. Os fariseus imaginaram que assim o tinham afastado de toda comunicação com o Divino. Nosso Senhor, todavia, disse à multidão que, embora a porta da sinagoga estivesse fechada, outra porta se abria: 

Eu sou a porta. Se alguém entrar por mim será salvo; tanto entrará como sairá e encontrará pastagem. (São João 10,9) 

Jesus não disse que havia muitas portas, nem que pouco importava por que outra porta alguém buscasse uma vida superior; Ele não disse que era uma porta, mas A Porta. Havia uma única porta na arca em que Noé e sua família entraram para ser salvos do dilúvio; havia uma única porta no Tabernáculo ou no Santo dos Santos. Reclamou para Si o direito exclusivo de admissão ou rejeição no rebanho de Deus. Não disse que Seu ensino ou Seu exemplo eram a porta, mas que Ele, pessoalmente, era o único acesso à plenitude da vida divina. Ele é único e não divide a honra com “colegas”, nem mesmo com Moisés, e tampouco com Zoroastro, Confúcio, Maomé ou quem quer que seja: 

Ninguém vem ao Pai senão por mim. (São João 14,6) 

Depois de diz

Em seguida, o Senhor passou a demonstrar que deu essa vida não por Seu ensinamento, mas por Sua morte. Não era unicamente um Mestre, mas sobretudo um Salvador. Para ilustrar mais uma vez o propósito de Sua vinda, voltou ao Antigo Testamento. Nenhuma figura é empregada com mais frequência no Êxodo para descrever o Deus que conduz seu povo da servidão para a liberdade do que a de um pastor. Os profetas também falavam dos pastores que guardavam um rebanho em bons pastos como distintos dos falsos pastores. Deus é retratado por Isaías como Aquele que leva sua ovelha nos braços (Isaías 40,11), e por Ezequiel como um pastor que procura a ovelha perdida (Ezequiel 34,12). Zacarias deu o retrato mais triste de todos ao profetizar que o Messias-pastor seria ferido e as ovelhas dispersas (Zacarias 13,7). O mais conhecido é o Salmo 23, em que o Senhor é retratado conduzindo sua ovelha a pastos verdejantes. 

O Senhor revelou a que custo esses pastos verdejantes são comprados. Ele não era o Bom Pastor porque provia fartura econômica, mas porque entregaria a própria vida em favor das ovelhas. Mais uma vez, a Cruz aparece sob o símbolo do pastor. O patriarca-pastor Jacó e o rei-pastor Davi tornam-se agora o salvador-pastor, do mesmo modo que o bastão torna-se um cajado; o cajado, um cetro; e o cetro, uma Cruz. 

O Pai me ama, porque dou a minha vida para a retomar. Ninguém a tira de mim, mas eu a dou de mim mesmo e tenho o poder de a dar, como tenho o poder de a reassumir. (São João 10,17-18) 

Sua morte não é nem acidental nem imprevista; tampouco Ele fala de Sua morte à parte de Sua glória; nem de entregar a vida sem tomá-la de volta. Nenhum homem comum poderia ter dito isso. A ajuda invisível do céu estava em Sua vocação. Aqui Nosso Senhor determinou que o amor do Pai tinha-O enviado à missão que Ele haveria de cumprir sobre a terra. Isso não significava o início do amor do Pai, como podia ser o início do amor de um pai por alguém que resgatasse o filho de um afogamento. Ele já era o Objeto Eterno de um Amor Eterno. Mas agora, em Sua natureza humana, dá um motivo adicional para esse amor: a prova de Seu amor ao morrer. Visto que não possuía pecado, a morte não tinha poder sobre Ele. Retomar Sua vida era parte do plano divino tanto quanto o era entregá-la. Os cordeiros sacrificiais oferecidos por séculos eram portadores do pecado por imputação, mas também eram pacientes inocentes levados em ignorância ao altar. O sacerdote da Antiga Lei impunha a mão sobre o cordeiro a fim de indicar que estava imputando pecados sobre aquele que seria sacrificado. Jesus, contudo, assumiu voluntariamente o pecado por causa da nova vida que concederia depois da Ressurreição. Quando disse que dá a vida pelas ovelhas, o Senhor não queria dizer apenas por causa delas, mas também no lugar delas. Depois da Ressurreição, quando deu a Pedro o triplo mandato de apascentar Seus cordeiros e ovelhas, Ele profetizou que Pedro teria de morrer pelo rebanho do Senhor, como de fato veio a fazer. 

O Pai O amava, disse o Senhor, não apenas porque entregou a vida, pois os homens podem tornar-se vítimas de forças superiores. Se morresse sem retomar a vida, Sua função teria cessado depois do sacrifício; teria sido apenas uma linda memória. Mas o amor do Pai contemplava mais do que isso. Ele também havia de retomar a vida e continuar a exercer os direitos reais. Ao retomar a vida, ele seria capaz de continuar soberano em termos diferentes. 

Essa ação dupla foi a ordem do Pai. 

Tal é a ordem que recebi de meu Pai. (São João 10,18) 

Desse modo, enquanto a entrega e a retomada de Sua vida foi espontânea, foi também uma consequência de um compromisso e uma ordem recebida do Pai Celestial quando se fez homem. O Pai não queria que o Filho perecesse, mas, ao contrário, que triunfasse no maior ato de amor possível. Mais tarde, durante a agonia no Jardim, confirmaria essa mistura de liberdade com ordem divina. Antes, ouviram-No dizer: 

Pois desci do céu não para fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou. (São João 6,38) 

Assim, a discussão que começou com o tema da liderança de ensino terminou no tema do acréscimo de vida por meio da Redenção. O milagre de dar vista ao cego de nascença foi como todos os outros milagres Dele — apontavam para Sua obra de dar a vida em resgate da humanidade. Cada momento de Sua vida tinha em si a Cruz; Seu ensino só tinha valor por causa da Cruz. Sua exposição ativa à Cruz por amor era bem diferente de uma aceitação estoica quando ela de fato acontecesse. Entrou voluntariamente pelo portão do Calvário por causa da justiça. Paulo mais tarde contaria aos romanos as maravilhas desse amor do pastor por sua ovelha negra. 

Com efeito, quando éramos ainda fracos, Cristo a seu tempo morreu pelos ímpios. Em rigor, a gente aceitaria morrer por um justo, por um homem de bem, quiçá se consentiria em morrer. (Romanos 5,6-7)

As palavras de Jesus descrevem uma situação tão antiga quanto o mundo, que pode ter, por isso, infinitas aplicações, exatamente porque tal situação está sempre em ato na história. A humanidade é um rebanho de ovelhas. (A comparação não tem nada, como se sabe, de negativo ou ofensivo na Bíblia, mas é antes carregada de grande ternura pelos homens). Um rebanho que é objeto de disputa e de conquista por forças opostas, sempre sujeita a diversos apelos.

Entre as inúmeras aplicações da página evangélica, nós queremos captar e enfatizar a que nos diz respeito hoje. Em verdade, em verdade vos digo: eu sou a porta das ovelhas. Todos quantos vieram (antes de mim) foram ladrões e salteadores […]. Eu sou a Porta. Se alguém entrar por mim, será salvo; tanto entrará como sairá e encontrará pastagem […]. Eu vim para que […] tenham a vida.

Também hoje se repete a situação de sempre. Muitos vêm aos homens, vêm à porta do redil e batem. Querem se insinuar no coração do homem; pedem sua confiança. Sendo, porém, que são muitos e cada qual tem uma proposta pessoal, apresenta uma pastagem diferente, o rebanho fica dividido e desorientado. Cada um desses pseudopastores diz: “Ouçam-me, vinde após mim”. Entres eles há os que prometem a justiça e outros a abundância. São as ideologias e os partidos que as professam e as transmitem às massas. O mundo está povoado de pastores deste tipo. 

Mas o que querem realmente? Na maioria das vezes, consciente ou inconscientemente, querem se fazer apascentar pelas ovelhas e não apascentar; engordar-se à custa delas e tornar-se fortes com seu número. São ladrões e assaltantes, ou ao menos mercenários aos quais não interessa o verdadeiro bem-estar das ovelhas, sua fome e sua integridade, uma vez que surgindo o perigo há sempre um jeito de fugir. 

É verdade que nem todos são assim. Há os que reúnem as ovelhas a seu redor, formam um círculo, um grupo ou um partido, porque acreditam que tem algo a dizer e a dar a suas ovelhas. Merecem todo nosso respeito. Mas se pensam poder guiar as ovelhas apenas com sua voz e lhes dar comida com o que têm, se pensam, em outras palavras, ser eles os salvadores, são uns iludidos. Todos os que vieram [antes de mim] foram ladrões e salteadores, diz o Senhor; isto é, são ovelhas que querem passar por pastores. Eles não dão a vida; muitas vezes até semeiam a destruição: São cegos e guias de cegos, como dizia Jesus aos chefes dos fariseus (Mt 15,14).

Contra todos estes falsos pastores, Cristo reivindica seu papel: Eu sou o bom Pastor, diz o Senhor, conheço as minhas ovelhas e as minhas ovelhas conhecem a mim. Por que bom Pastor? Porque ele é o caminho, a verdade e a vida. Não se trata de seguir o partido de Cristo ou da Igreja, mas o próprio Cristo. Nós cristãos devemos saber distinguir entre mil vozes que perpassam os ares a voz que, como diz o Senhor, as ovelhas reconhecem. Acima das ideologias e das explicações partidárias, distinguir a voz de Jesus. Ela ressoa ainda hoje na voz dos pastores que ele mesmo escolheu para apascentar, com sua voz, as ovelhas.

Éreis como ovelhas desgarradas – escreve o apóstolo Pedro – mas agora retornastes ao Pastor e guarda das vossas almas. Portanto, todas as ovelhas desgarradas. Este regresso se deve repetir também hoje. Nós estamos agora desgarrados; a comunidade cristã, em certos aspectos está de novo em situação de diáspora, isto é, de dispersão. Há uma crise de identidade, como se diz, e alguns aproveitam, iludindo-se de poder dissolver o rebanho de Cristo e não ter assim opositores ao próprio modelo de sociedade secular e ateia. Repete-se, em certo sentido, o episódio da captura de Jesus: Ferirei o pastor, e as ovelhas do rebanho serão dispersadas (Mt 26,31).

Devemos por isso voltar de verdade àquele que Pedro chamou “o pastor das nossas almas”. Devemos descobrir como vê o julga Jesus as coisas e os acontecimentos deste mundo; descobrir “sua” verdade, porque somente ela nos tornará livres. Tendo feito sair todas as que são suas, caminha à frente delas e as ovelhas o seguem, pois conhecem a sua voz: é o êxodo atrás do bom Pastor começado no batismo que deve continuar ao longo da nossa vida.

Quem entra pela porta encontrará pastagem. Esta pastagem é Ele, sua palavra e seu corpo e sangue que daqui a pouco receberemos. Jesus é deveras aquele que nos pode conduzir para fora”: fora da situação incômoda, incerta, tenebrosa e injusta, fora da crise.

Se alguém entrar por mim, encontrará pastagem, disse Jesus. Esta pastagem é ele mesmo, sua Palavra que acabamos de ouvir, é seu corpo que agora nos preparamos para receber.er aos fariseus que não eram de fato mestres, mas líderes cegos, desconhecedores e mercenários, colocou-Se a Si mesmo em contraste com eles não apenas como o Único Mestre, mas como algo infinitamente maior. E não estava meramente dando ideias ou leis, estava dando vida. 

Eu vim para que as ovelhas tenham vida e para que a tenham em abundância. (São João 10,10) 

Os homens têm existência; o Senhor, no entanto, lhes daria vida; não a vida biológica ou física, mas divina. A natureza sugere, mas não pode dar essa vida mais abundante. Animais têm vida mais abundante que as plantas; o homem tem vida mais abundante que os animais. Disse ter vindo para dar uma vida que transcende o humano. Assim como o oxigênio não pode dar uma vida mais abundante à planta a menos que esta se renda a ele, assim também o homem não pode partilhar da Vida Divina a menos que Nosso Senhor se renda para dá-la.