Nas lágrimas dos homens pode ver-se a glória de Deus
O amor faz-se lágrima para lavar os olhos e despertar a fé nas coisas que não se veem. Nas lágrimas choradas por um amigo que morreu, está a presença de um Deus que não deixa ninguém na morte. No choro de um povo oprimido, está o grito de um Deus que se faz homem para abrir os túmulos. No vale de lágrimas da humanidade ferida, faz-se ouvir a voz do vento que traz o Espírito da vida.
Vivemos e lutamos durante poucos ou muitos anos, e depois morremos. Bem sabemos que esta vida é um tempo de prova e de luta; é o campo de provas da eternidade. A felicidade do céu consiste essencialmente na plenitude do amor.
Se não entrarmos na eternidade com amor a Deus no nosso coração, seremos absolutamente incapazes de gozar da felicidade da glória. A nossa vida aqui em baixo é o tempo que Deus nos dá para adquirirmos e provarmos o amor que lhe guardamos no nosso coração, um amor que devemos provar ser maior que o amor por qualquer dos bens por Ele criados, como o prazer, a riqueza, a fama ou os amigos. Devemos provar que o nosso amor resiste à investida dos males criados pelo homem, como a pobreza, a dor, a humilhação ou a injustiça. Quer estejamos numa posição alta ou baixa, em qualquer momento devemos dizer: «Meu Deus, eu te amo», e prová-lo com as nossas obras. Para alguns, o caminho será curto; para outros, longo. Para uns, suave; para outros, abrupto. Mas acabará para todos. Todos morreremos.
Assim fala o Senhor Deus: «Vou abrir os vossos túmulos e deles vos farei ressuscitar, ó meu povo, para vos reconduzir à terra de Israel. Haveis de reconhecer que Eu sou o Senhor, quando abrir os vossos túmulos e deles vos fizer ressuscitar, ó meu povo. Infundirei em vós o meu espírito e revivereis. Hei de fixar-vos na vossa terra, e reconhecereis que Eu, o Senhor, digo e faço». Ezequiel 37,12-14
A situação desesperada do povo no exílio de Babilônia assemelha-se à morte, à descida ao túmulo. Perante esta desolação, o profeta anuncia que o Senhor vai levantar cada um do túmulo onde se encontra e, pelo seu Espírito, os fará reviver na terra de Israel. Os versículos são a conclusão da visão conhecida como “visão dos ossos ressequidos” que se encontra no capítulo 37 da profecia de Ezequiel.
Ezequiel é um dos profetas do desterro de Babilônia, iniciado com uma primeira deportação cerca do ano 597 a.C. e a segunda deportação pelo ano 588 a. C.. Ezequiel terá seguido para o desterro na primeira deportação quando era ainda um jovem. Foi chamado por Deus, como ele próprio diz, “de entre os desterrados” (Ez 1,2) num lugar junto do rio Cabar, como indica 1,3. A sua profecia está repleta de visões e ações simbólicas, com as quais compõe a sua mensagem.
O pequeno texto que refletimos, composto apenas por três versículos, tem um grande valor teológico. Depois de ter contemplado a visão dos ossos ressequidos, na qual o Espírito dá vida aos ossos espalhados pelo vale, o profeta escuta a sentença de Deus. Sentença fala da intervenção de Deus em favor do povo que vive como se estivesse morto.
O texto está construído em dois tempos nos quais se repete o mesmo conteúdo. Primeiro Deus diz o que vai fazer e depois diz “quando eu” fizer. Que vai Deus fazer? Vai abrir os sepulcros, fazer sair deles o povo e conduzi-lo à terra de Israel. Após a repetição, surge um elemento novo, que é o Espírito. Quando tudo isto acontecer “introduzirei em vós o meu Espírito e vivereis”, o mesmo Espírito que o profeta contemplou a dar vida aos ossos ressequidos, e nos lança de imediato para o tema da ressurreição individual que só mais tarde terá lugar na esperança de Israel.
Os israelitas, cativos em Babilônia, têm dificuldade em acreditar que alguém pode, algum dia, libertá-los daquela situação insustentável. Vivem como mortos, como se já tivessem descido ao sepulcro, tal é o seu desalento. A falta de esperança, o desespero, são definidos pelo profeta Ezequiel como uma morte. De fato, o povo diz “a nossa esperança desvaneceu-se; ficamos reduzidos a isto” e isto é dizer “os nossos ossos estão completamente ressequidos”. Quem pode dar vida a estes ossos? Quem pode renovar a vida deste povo? O Espírito do Senhor pode devolver a vida àqueles que a perderam, é o que o Senhor diz a Ezequiel e este repete para o povo. “Infundirei em vós o meu espírito e revivereis”. Do mesmo modo nos pode dar vida a nós que, hoje, meditamos nesta palavra.
Das profundezas do desespero, Senhor, clamo a ti. Escuta minha voz, ó Senhor; dá ouvidos à minha oração. Senhor, se mantivesses um registro de nossos pecados, quem, ó Senhor, sobreviveria? Tu, porém, ofereces perdão, para que aprendamos a te temer.
Salmo 130,1-4
Acredita que, estando no profundo abismo, Deus escuta a tua voz e vem salvar-te? É este desafio do salmista que dá, hoje, forma à nossa fé. Vale a pena continuar a invocar o Senhor, vigiar como as sentinelas, esperar pelo Senhor até à aurora, porque nele “está a misericórdia e abundante redenção.
O profeta Ezequiel refere-se à saída do desterro e regresso a Israel, mas a forma como o faz revela mais do que ele é capaz de entender, porque dá como exemplo a morte biológica, à qual o Espírito dá novo alento, devolvendo-o à vida, expressão que encontramos na carta aos romanos (Rm 8,8-11).
Portanto, os que estão na carne não podem agradar a Deus. Vocês, porém, não estão na carne, mas no Espírito, se de fato o Espírito de Deus habita em vocês. E, se alguém não tem o Espírito de Cristo, esse tal não é dele. Se, porém, Cristo está em vocês, o corpo, na verdade, está morto por causa do pecado, mas o Espírito é vida, por causa da justiça. Se em vocês habita o Espírito daquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos, esse mesmo que ressuscitou Cristo dentre os mortos vivificará também o corpo mortal de vocês, por meio do seu Espírito, que habita em vocês.
O capítulo 8 da carta aos romanos articula a oposição entre carne e Espírito, sendo a carne o que afasta o homem de Deus, ou seja, o pecado e toda a espécie de desordem que desequilibra o homem nas suas relações. O Espírito, é tudo aquilo que orienta o homem para Deus e o coloca na dimensão divina, acima da materialidade.
Neste capítulo está concentrado o maior número de referência ao Espírito. De fato, Paulo, faz referência ao Espírito vinte e duas vezes neste capítulo, enquanto que, em toda a carta se contam trinta e quatro referências. O Espírito é o verdadeiro protagonista deste capítulo, como pode ver-se nos quatro versículos desta leitura, onde o Espírito aparece seis vezes. O Espírito faz-nos filhos de Deus, habita em nós, livra-nos do pecado, faz-nos pertença de Cristo, torna eficaz a nossa oração, anima a nossa esperança, dá-nos uma vida nova e ressuscita-nos em Cristo. Podemos encontrar aqui alguma inspiração em Ezequiel.
Note a ação do Espírito Santo: no passado, em Ezequiel, a profecia – eu abrirei as sepulturas do exílio e os farei sair delas; na Igreja, pelo Espírito, a realização – vivificará também o corpo mortal de vocês; essa graça abundante é possível porque houve o cumprimento em Jesus.
O Evangelho de João capítulo 11 é totalmente preenchido com a morte e ressurreição de Lázaro. O texto pode dividir-se em cinco partes: a notícia da doença de Lázaro e a ausência de Jesus; o diálogo de Jesus com os discípulos; o diálogo de Jesus com Marta; o diálogo de Jesus com Maria; os diálogos junto do sepulcro.
Por isso, as irmãs de Lázaro mandaram dizer a Jesus: — Aquele que o Senhor ama está doente. Ao receber a notícia, Jesus disse: — Essa doença não é para morte, mas para a glória de Deus, a fim de que o Filho de Deus seja glorificado por meio dela. Depois, disse aos seus discípulos: — Vamos outra vez para a Judeia. Os discípulos disseram: — Mestre, ainda há pouco os judeus queriam apedrejá-lo! E o senhor quer voltar para lá? Jesus respondeu: — Não é verdade que o dia tem doze horas? Se alguém andar de dia, não tropeça, porque vê a luz deste mundo. Mas, se andar de noite, tropeça, porque nele não há luz. Tendo dito isso, acrescentou: — Nosso amigo Lázaro adormeceu, mas vou para despertá-lo. Então os discípulos disseram: — Senhor, se dorme, estará salvo. Jesus falava da morte de Lázaro, mas eles pensavam que tivesse falado do repouso do sono. Então Jesus lhes disse claramente: — Lázaro morreu. Por causa de vocês me alegro de que não estivesse lá, para que vocês possam crer. Mas vamos até ele. Então Tomé, chamado Dídimo, disse aos outros discípulos: — Vamos também nós para morrer com o Mestre!
João 11,3-4;7-16
Na primeira parte salienta-se a simplicidade do recado das irmãs de Lázaro a Jesus, “Senhor, o teu amigo está doente”. A forma direta, substituindo o nome de Lázaro por “o teu amigo” denota uma familiaridade entre elas e Jesus. Com estas palavras as irmãs de Lázaro, e ele próprio, esperam que Jesus os visite, mas Jesus faz sentir a sua ausência permanecendo onde está por mais dois dias. Aos que estão com ele, Jesus faz saber que a situação de Lázaro é ocasião para que se manifeste a glória de Deus e do seu filho.
Do diálogo de Jesus com os discípulos ressaltam alguns pormenores. Jesus toma a iniciativa de ir de novo para a Judeia, o que não era aconselhável, porque o queriam ali apedrejar, e os discípulos mostram resistência. Jesus diz “vamos” e eles respondem “querem-te apedrejar”, o que significa que estão fora desta cena. Para Jesus, porém, a sua morte não é para já porque a noite ainda não venceu a luz, ele é a luz. Jesus diz, “Lázaro dorme”, e os discípulos entendem que já não vale a pena arriscar a vida indo para a Judeia. Jesus confirma a morte de Lázaro e desafia-os de novo “vamos” e só aí consegue que os discípulos se disponham a acompanhá-lo “Vamos nós também, para morrermos com Ele”.
Já estamos à entrada de Betânia, e começa o diálogo de Jesus com Marta, no qual ela revela não estar no mesmo tempo de Jesus. Ela começa no passado “Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido” e quando Jesus lhe fala da ressurreição ela atira para o futuro “Eu sei que há de ressuscitar na ressurreição do último dia”. Jesus chama-a ao presente e para ele: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem acredita em Mim, ainda que tenha morrido, viverá” e exige-lhe uma profissão de fé “acreditas nisto?” porque crer é quanto basta para ter vida.
Maria entra em cena arrastando atrás de si os que estão com ela em casa. Com Maria tudo é mais emocional. Ela diz as mesmas palavras de Marta, mas aos pés de Jesus e entre lágrimas, de modo que todos choram, e Jesus “comoveu-Se profundamente e perturbou-Se”. A cena termina com Jesus a chorar e os judeus divididos entre os que reconhecem que ele amava Lázaro e os que entendem que fracassou porque curou a tantos e não curou o seu amigo.
Junto do sepulcro, Jesus comove-se interiormente, mas exteriormente está diante do grandioso sinal da morte do seu amigo e da censura de quantos entendem que ele falhou por não ter vindo curá-lo e agora entendem que ele não tem poder sobre a morte “não podia também ter feito que este homem não morresse?”. A Marta, que julga não haver nada mais do que um corpo morto e a cheirar mal, Jesus chama-a à fé “Eu não te disse que, se acreditasses, verias a glória de Deus?” E cumpre-se o que Jesus tinha dito “chegou a hora em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus e os que a ouvirem viverão”. Lázaro é um desses que, ainda estando morto, ouve a voz de Jesus e sai para fora.
Antes de entrar na escuridão de sua paixão e morte, Jesus quis, por assim dizer, revelar antecipadamente o significado com este milagre. Da mesma forma, a Igreja, hoje, antes de entrarmos no mistério litúrgico da Páscoa, quer que consideremos, como num esboço, a ideia a seguir: o que aconteceu para Lázaro em particular, isto é, sua passagem da morte para a vida, a Páscoa de Cristo o realiza em prol de toda a humanidade; sua morte vence a morte do homem; sua ressurreição é penhor da ressurreição do homem.
Lázaro morto é, portanto, o símbolo de toda a humanidade morta espiritualmente pelo pecado: por isso, como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim a morte passou a todo gênero humano, porque todos pecaram (Rm 5,12). Passou para todos os homens!
Foi seu amor ao amigo. Eis a razão de tudo: Deus continuou a amar o homem, embora rebelde, embora espiritualmente morto. Este grande amor de Jesus encontra no evangelho uma das manifestações mais tocantes: diante do amigo morto – refere o evangelista João – Jesus ficou interiormente comovido e chorou. Jesus amou também como homem, porque é próprio do homem comover-se e chorar. Experimentou ele também aquele sofrimento interior, um doloroso aperto do coração e aquele vazio angustiante da mente que invadem o homem diante da morte de uma pessoa realmente querida. Quem sabe quanta e que profunda dor se estampara em seu rosto a ponto de arrancar dos presentes a exclamação: “Olhem como o amava!”
O que aconteceu no túmulo de Lázaro foi um sinal, foi o início de um milagre que Jesus continua realizando ainda hoje na Igreja e no mundo. Ele se enterneceu de compaixão e de amor também por mim, no dia em que, constrangido em amor, iluminado pelo Espírito, cri no coração e confessei-O com minha boca, para no batismo, me chamar da morte para a vida, das trevas para a luz; comove-se ainda hoje de amor quando me levanta do mal e da queda com seu perdão. Também neste momento Ele está diante de nós, como estava diante do túmulo de Lázaro em Betânia. Nós ainda não fomos ressuscitados completamente; não o seremos enquanto estivermos nesta terra.
Toda nossa vida cristã é uma luta contínua contra o mau e contra a morte. Esta procura está sempre a nos engolir, como as ondas do mar, que carregam consigo tudo o que encontram na praia. A morte nos cerca. E não apenas a física, que corrói minuto por minuto nossa existência. Também a outra morte, que a Bíblia chama “a segunda morte”, a morte do espírito. Na Sociedade permissiva e pagã em que vivemos atualmente, o pecado irrompe por todos os lados, insinua-se em todas as relações humanas … Mas o pecado e a morte também nos tentam no interior de nossa casa; os germes mais perigosos são, aliás, precisamente aqueles que carregamos em nós mesmos, em nossa carne. Na Bíblia, no início do capítulo sobre o dilúvio encontramos as seguintes palavras: “O Senhor viu que a maldade dos homens era grande na terra, e que todos os pensamentos de seu coração estavam continuamente voltados para o mau (Gn 6,5). O espetáculo que a terra oferece aos olhos de Deus hoje não deve ser muito diferente.
Mas agora há um Salvador, há Jesus Cristo entre nós. Ele está diante de nós e nos chama como a Lázaro: Vem para fora! Vem para fora da indiferença, de tua preguiça, de teu egoísmo, da desordem em que você vive; vem para fora de tua dissipação, de teu desespero. As palavras proféticas de Ezequiel que anunciamos se tornam com Cristo uma realidade: Eis, eu abro os vossos sepulcros, vos ressuscito, ó povo meu … farei entrar em vós o meu espírito e revivereis.
Neste tempo de Páscoa devemos também entrar em crise intimamente, gemer, nos revoltar contra as forças do mal presentes no mundo e em nossa vida. Devemos dizer como Tomé no evangelho meditado hoje: Vamos também nós morrer com ele, morrer aos nossos pecados, vamos nos converter para ressuscitar com ele como criaturas novas, purificados pelo seu sangue e pelo perdão que o Pai das Misericórdia nos concede.
“Por que Cristo vibra de emoção diante do túmulo de Lázaro” – escreve Agostinho – “a não ser para te ensinar que tu deves te comover quando te vês oprimido e esmagado por tamanho peso de pecados? Tu te examinaste, te reconheceste culpado, disseste para ti: Fiz aquele pecado e Deus me perdoou! Cometi aquele outro e Deus deferiu o castigo; escutei o evangelho e o desprezei; fui batizado e caí nas mesmas culpas. O que farei? Aonde irei? Como posso me libertar? Quando falas desse modo, quer dizer que Cristo se comove, porque em ti vibra a fé. Nos suspiros de quem freme (uiva, treme – ato de contrição) anuncia-se a esperança de quem ressuscita” (Tract. in Ioh. 49,19).
E nós também concluamos nossa reflexão com o olhar voltado para a ressurreição: à de Jesus que celebramos na Páscoa, e à nossa. Antes de ir ao sepulcro do amigo Lázaro, Jesus diz à irmã dele, Marta: “Eu Sou a ressurreição e a vida. Crês nisso?” Que esta pergunta de Jesus paire agora sobre nossa comunidade, que ressoe no íntimo de cada um de nós, como um pedido que Ele dirige a si próprio: Eu Sou a ressurreição e a vida.