“Agora, pois, se ouvirem atentamente a minha voz e guardarem a minha aliança, vocês serão a minha propriedade peculiar dentre todos os povos. Porque toda a terra é minha, e vocês serão para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa.” Êxodo 19,2-6a

A partir dessa revelação percorreremos por uma profunda mensagem onde apresentaremos a comunidade cristã naquilo que ela tem de mais característico aos olhos de Deus. Vemos nesse texto em Êxodo a eleição: Deus escolhe um povo e estabelece um relacionamento especial com ele, tornando-o seu aliado.

O apóstolo Paulo nos revela qual é a razão desta eleição em Romanos (5,6-11): o amor gratuito de Deus que nos reconciliou consigo “quando éramos ainda pecadores” mediante a morte de Cristo.

“Ao ver as multidões, Jesus se compadeceu delas, porque estavam aflitas e exaustas como ovelhas que não têm pastor. Então Jesus disse aos seus discípulos:

— A seara é grande, mas os trabalhadores são poucos. Por isso, peçam ao Senhor da seara que mande trabalhadores para a sua seara” (Mt 9,36-38).

O Evangelho (Mateus 9,36 – 10,8) nos aponta qual é a finalidade de tudo isso, ou seja, para que Deus escolheu esse povo: e a resposta é a missão. Através da missão a comunidade ou o povo escolhido se torna instrumento e veículo da eleição para todos os povos: tendo recebido sem merecimento, gratuitamente dá, ou melhor, se dá.

Dizíamos que a mensagem em Êxodo é a eleição. Israel tinha recém-saído do Egito; Deus faz com ele no Monte Sinai uma aliança, isto é, um pacto de amizade. Nesta ocasião, toda a grande experiência do Êxodo do Egito é apresentada por Deus como uma escolha. Ele se inclinou como águia, para carregar seu povo sobre suas asas, para a liberdade. Ele está disposto a fazer desse povo “seu” povo, um povo privilegiado, um povo de reis e de sacerdotes.

Essas coisas ditas no Antigo Testamento, o Novo Testamento nos ensina que fomos incluídos (cf 1Co 10,4); eram figuras para nós, povo da Nova Aliança (cf 1Pe 2,5.9; Ap 1,6; 5,10). Nós, comunidade dos batizados, somos, sobre a face da terra e aos olhos de Deus, um povo à parte, um povo santificado, um sacerdócio real; quer dizer, somos um povo que faz o papel de intermediário entre Deus e a humanidade, pela sua participação com Cristo mediador universal entre Deus e o mundo: “Nós somos o seu povo, e rebanho do seu pastoreio, Senhor”, oramos no Salmo (100,3). Esta aliança, selada por Cristo, é o que nós renovamos e celebramos a cada vez que nos reunimos.

São Paulo nos afirma (Rm 5,6-11) que a escolha não aconteceu por mérito nosso, mas é por amor que Javé nos fez sair do Egito e nos libertou da escravidão (cf Dt 7, 6-9). O apóstolo diz a mesma coisa para nós cristãos: não é por méritos particulares, como se fossemos melhores, mais justos e mais honestos do que outras pessoas, que nos tornamos Igreja; mas somente pelo amor a nós que ele nos demonstrou quando éramos ainda sem força: A prova de que Deus nos ama é que Cristo, quando ainda éramos pecadores, morreu por nós. Não é, portanto, motivo de orgulho, pertencer à Igreja, mas de responsabilidade e de gratidão: Pois quem é que faz com que você sobressaia? E o que é que você tem que não tenha recebido? E, se o recebeu, por que se gloria, como se não o tivesse recebido? (1Co 4,7).

Deus, portanto, por puro amor escolheu para si e privilegiou uma pequena porção da humanidade – primeiro o povo hebreu – depois a Igreja – e estreitou com ela uma aliança. Bem, se as coisas passarem por aqui, essa questão de privilégio seria uma ideia difícil de engolir. Depois ainda a Aliança nos faz pensar em algo defensivo ou ofensivo. Será que nós, cristãos, formamos uma casta privilegiada que se aliou com Deus contra os outros povos? A resposta clara, que dá um xeque-mate, vem do próprio Evangelho: Receberam de graça, de graça deem.

Deem gratuitamente! O que? Tudo aquilo que receberam: Tudo aquilo que são. Nenhum privilégio para nós. Tudo deve circular, tudo se deve repartir: de Deus a nós, de nós aos irmãos. Antes de tudo, isso vale no amor: aquele amor de Deus do qual a comunidade cristã fez experiência se deve derramar e transbordar nos irmãos como amor ao próximo. Os filhos(as) da Igreja não podem se contentar em se amar entre eles, como membros de um clube, ou partido. Cristo falou: Se amam os que amam vocês, o que há de diferente dos pagãos? […]; os cristãos devem se sentir obrigados a amar não só os amigos, mas os inimigos, os que combatem nossa igreja, que a contestam, que dirá daqueles cristãos que pensam e agem diferente de nós mas estão sobre o mesmo fundamento. Amar o pecador, odiar o pecado; respeitar as doutrinas e costumes diferentes de outros cristãos, sem julgar, sem falar mal; ao contrário, trabalhar pela unidade.

Deem gratuitamente! De que modo? Aqui está talvez a palavra mais importante da Liturgia: a missão. Jesus escolheu doze e os enviou em missão, mostrando, com isso, que ele escolhe e prefere algumas pessoas, o faz para enviá-los aos outros, àquela multidão desfalecida pelo cansaço como ovelhas sem pastor referida no começo do trecho do Evangelho em destaque e da qual Jesus teve compaixão.

Nós cristãos, todos nós, não somente os sacerdotes e líderes, somos, portanto, aliados de Deus, não contra outras pessoas que pensam e agem diferente, mas a favor deles, procurando fazer chegar a todos a salvação. Que todos nos considerem, pois, como simples operários de Cristo e administradores dos mistérios de Deus (1Co 4,1).

“A seara é grande mas poucos são os trabalhadores” (Mateus 9,37) – as palavras do Senhor têm plena atualidade nos nossos dias. Há searas (comunidades, lugares) inteiras que se perdem porque não há quem as recolha; daí a urgente necessidade de cristãos alegres, satisfeitos, gratos, eficazes, fiéis à Igreja, conscientes do que têm entre mãos. E isso diz respeito a todos nós, pois o Senhor necessita de todos: de trabalhadores e estudantes que saibam levar Cristo à fábrica e à Universidade, com o seu prestígio de bons profissionais e com seu apostolado; de professores exemplares que ensinem com sentido cristão, que dediquem generosamente o seu tempo aos alunos e sejam verdadeiros mestres; de homens e mulheres consequentes com a sua fé em cada atividade humana; de pais e mães de família que se preocupem verdadeiramente com a educação cristã integral – fé e conhecimento de Cristo ao espírito, as virtudes para a alma e estilo de vida saudável para o corpo – e ainda que intervenham nas associações de pais nas escolas, nas associações de bairro, que interaja com prudência e criatividade nas redes sociais e agentes representativos da sociedade.

Perante tanta gente desorientada, vazia de Deus e cheia somente de bens materiais ou o desejo de possuí-los, não podemos ficar à margem. Ainda que sob uma camada de indiferença, as pessoas, no fundo de suas almas, estão sedentas de que lhes falem de Deus e das verdades que dizem respeito à sua salvação. Se nós os cristãos não trabalharmos com sacrifício neste campo, acontecerá o que os Profetas anunciaram: 

Os campos foram arrasados, e a terra está de luto, porque o cereal foi destruído, o vinho novo acabou, o azeite está no fim.  Fiquem envergonhados, lavradores; lamentem, vinhateiros, por causa do trigo e da cevada, porque a colheita foi destruída. As videiras secaram, as figueiras murcharam, as romãzeiras, as palmeiras e as macieiras também. Todas as árvores do campo secaram, e já não há alegria entre os filhos dos homens.” (Jl 1,10-12).

Deus esperava esses frutos, mas a colheita (geração) perdeu-se por desleixo daqueles que tinham que cuidar dela e recolhê-la. 

A gravidade da missão que nos incumbe deve levar-nos a fazer um sério exame de consciência: Que fiz hoje para dar a conhecer a Deus? A quem falei hoje de Cristo? Preocupo-me realmente com a salvação dos que me rodeiam? Sou consciente de que muitos se aproximariam do Senhor se eu fosse mais audaz?

AS DESCULPAS QUE nos podem ocorrer para não levarmos os outros a Cristo são muitas: falta de preparação suficiente – aqui fica sob a responsabilidade dos sacerdotes e líderes pela formação – escassez de tempo, poucas relações no âmbito do trabalho profissional, as enormes distâncias na grande cidade em que vivemos …, mas o Senhor continua a dizer-nos a todos nós, e muito especialmente neste tempo de tantas deserções, que a messe é muita e os ministros poucos. E a messe que não se recolhe a tempo, perde-se.

São João Crisóstomo deixou-nos umas palavras que podem ajudar-nos a examinar se nos desculpamos facilmente diante desse nobre dever a que Deus nos chama: “Não há nada mais frio – diz o santo – que um cristão despreocupado da salvação alheia. Não podes aduzir como pretexto a pobreza econômica. Acusar-te-á a velhinha que deu as moedas no Templo. O próprio Pedro disse: Não tenho ouro nem prata (At 3,6). E Paulo era tão pobre que muitas vezes passava fome e não tinha o necessário para viver. Não podes pretextar a tua origem humilde: eles também eram pessoas humildes, de condição modesta. Nem a ignorância te servirá de desculpa: todos eles eram pessoas sem letras. Sejas escravo ou fugitivo, podes cumprir o que depende de ti. Assim foi Onésimo, e vê qual foi a sua vocação … Não invoques a doença como pretexto, pois Timóteo estava submetido a frequentes indisposições […]. Cada um pode ser útil ao seu próximo, se quiser fazer o que está ao seu alcance”. 

“A seara é grande, mas os trabalhadores são poucos …” Ao escutarmos isso – comenta São Gregório Magno – não podemos deixar de sentir uma grande tristeza, porque é preciso reconhecer que há pessoas que desejam escutar coisas boas; falta, no entanto, quem se dedique a anunciá-las.

Para que haja muitos operários que trabalhem lado a lado e com entusiasmo neste campo do mundo, cada um no seu lugar, o próprio Senhor nos ensina o caminho a seguir: Por isso, peçam ao Senhor da seara que mande trabalhadores para a sua seara. Jesus convida-nos a orar para que Deus desperte na alma de muitos o desejo de um maior compromisso nesta tarefa de salvação e discipulado. A oração é o meio mais eficaz de evangelização, de conseguir que muitos descubram que Deus os chama para seus cooperadores. Todos os cristãos devem orar habitualmente para que o Senhor envie operários à sua messe. E se o fizermos com uma oração contínua, confiante e humilde, não só conseguiremos do Senhor novos operários para o seu campo, como nós mesmos nos sentiremos chamados a participar com muito mais audácia nessa missão divina.

Quantas reflexões brotam desta reflexão evangélica: que a Igreja toma profunda consciência descobrindo ser Igreja para o mundo, antes de Igreja no mundo.

Mas também para nós, individualmente, a Palavra de Deus cria uma nova postura ante os irmãos. O compromisso missionário está claramente condensado nas palavras de Jesus: de graça receberam, de graça deem. Daí, difundi a experiência da nossa fé, da nossa esperança; a experiência, sobretudo, do amor de Deus.

Agora sabemos aonde nos impele essa Nova Aliança com Deus: a sermos colaboradores na salvação de todo o mundo. Peçamos Àquele que sancionou essa Aliança com seu sangue que nos conceda hoje o vigor da fé e a pujança da compaixão em amor, para que possamos dar de verdade gratuitamente o que recebemos.