Fecharam-me na escura cisterna para não poder falar. Não sabiam que a palavra é luz para os meus olhos e que o meu coração medita dia e noite na tua lei. Fecharam-me para calar a minha voz, sem saber que o som da tua voz ecoa com mais força no silêncio da escuridão. Atolaram-me no fundo da existência, sem saber que descer é já subir até àquele que tem a vida toda na mão. No fundo do poço recupero a confiança.

“O Senhor, porém, está ao meu lado como poderoso guerreiro. Diante dele meus perseguidores tropeçarão; não conseguirão me derrotar. Fracassarão e serão totalmente humilhados; sua desonra jamais será esquecida. Ó Senhor dos Exércitos, tu provas o justo e examinas pensamentos e emoções. Permite que eu veja tua vingança contra eles,

pois coloquei minha causa em tuas mãos. Cantem ao Senhor! Louvem o Senhor! Pois ele salva o pobre e necessitado da mão de seus opressores”.

Jeremias 20:11-13

Feliz pela missão que Deus lhe confiou, o profeta Jeremias vive uma experiência radical por causa da rejeição dos seus ouvintes em relação à palavra por ele proclamada. Ameaçado e maltratado por todos, ele experimenta-se frágil e triste mas também corajoso e comprometido com a palavra e com Deus. Na sua fragilidade espera que Deus o salve e perante o silêncio de Deus fica confuso sem deixar de confiar.

Assim, o profeta vive uma situação de medo dentro e fora de si: dentro, a Palavra imperiosa de Deus, carregada de obscuros prenúncios; fora, os inimigos e rivais o perseguem. 

“Até meus irmãos fingem não me conhecer; tratam-me como um desconhecido. O zelo por tua casa me consome; os insultos dos que te insultam caíram sobre mim. Quando choro e jejuo, eles zombam de mim. Não te escondas de teu servo; responde-me sem demora, pois estou aflito. Pois o Senhor ouve o clamor dos pobres; não despreza seu povo aprisionado. Pois Deus salvará Sião e reconstruirá as cidades de Judá. Seu povo viverá ali e em sua própria terra se estabelecerá”.

Salmo 69:8-10.33.35

Jeremias podia ter sido o autor deste salmo, porque está ali retratada toda a sua experiência de vida. Desprezado por amigos e perseguido por inimigos vê-se atolado no lodo da funda cisterna onde o fecharam. Gritou por Deus, que parecia indiferente à sua dor, e teve que encontrar confiança na única certeza que lhe restava, a bondade de Deus que atende os pobres.

Sobre essas situações de angústia que nós também sentimos, o evangelho (Mt 10,26-33) que meditamos hoje derrama como um bálsamo a Palavra de Deus: “Não tenham medo!” É uma espécie de refrão que ressoa nas palavras de Jesus. Antes de qualquer raciocínio, devemos assimilar e por assim dizer acolher em nós, saboreando-lhe toda a doçura, estas palavras do Senhor: “Não tenham medo!”

Nós estamos cheios de medo; o medo é a nossa condição. A criança tem medo do escuro e da pessoa que grita; tem medo dos monstros que estupidamente as pessoas grandes incutem em sua cabecinha para mantê-la disciplinada. O adolescente tem medo de si, do outro sexo: medos inconscientes, mas dolorosos; medos que se chamam timidez, complexos de inferioridade, agressividade. 

E nós adultos? Estamos nós, ao menos nós, livres de medos? Pelo contrário, nós vivemos roídos de medo, da pior forma de medo – a angústia. Nós vivemos tremendo de medo: do futuro, medo da morte, ou simplesmente do amanhã.  Jesus uma vez identificou essas angústias, dando-lhes nome: O que comeremos? O que beberemos? Com que nos vestiremos?

Em nosso mundo contemporâneo, sofisticado e complicado, o ser humano experimenta uma forma de angústia ainda mais radical: aquela da mesma existência. Este mundo lhe aparece por vezes uma realidade hostil e ameaçadora, capaz de esmagá-lo com seus cataclismos, ou também com seu próprio progresso, como uma máquina demais potente que foge das mãos do operador e o engole em suas malhas. É o reflexo da maldade humana que, como uma nuvem tóxica, joga sua sombra sobre a criação desfigurando-a e conferindo-lhe um aspecto hostil. É o pecado do qual nos falou Paulo (Rm 5,12-15) que, a partir da transgressão de Adão, foi se engrossando como uma avalanche, determinando nossa situação de mundo. A terra parou em muitos lugares de sorrir e responde com tribulações e espinhos às necessidades da humanidade.

“Mas o dom gratuito não é como a ofensa. Porque, se muitos morreram pela ofensa de um só, muito mais a graça de Deus e o dom pela graça de um só homem, Jesus Cristo, foram abundantes sobre muitos!”.

Romanos 5:15

Paulo aponta a liberdade do homem como lugar de onde nasce o pecado. Com efeito, Adão, representante de todos os homens, arrasta consigo para a morte toda a humanidade. Em Cristo, porém, é dada ao homem a graça, na abundância necessária, para que tenha de novo a vida.

Salvos por Cristo do abismo da morte e do pecado, porque “quando ainda éramos pecadores ele morreu por nós”, adquirimos uma nova vida, a vida do cristão reconciliado. Antes da reconciliação realizada por Cristo na sua morte, éramos de Adão, homens da terra, marcados pelo pecado. Agora pertencemos a Cristo, homem do céu, cabeça de uma nova humanidade. Em Adão estava o pecado e a morte, em Cristo está a abundância da graça, superabundância, mais precisamente.


Ao estabelecer a comparação entre Cristo e Adão, Paulo tem a preocupação de deixar claro que se trata de uma comparação desigual. Porque a graça de Cristo é superior ao mal causado por Adão no seu pecado. Por isso, depois de dizer “a graça de Deus… foi a todos concedida em abundância” no versículo 15, repete “recebem em abundância a graça” (v 17) para terminar dizendo “onde aumentou o pecado, superabundou a graça” e, “assim também a graça reina pela justiça até à vida eterna” (v 20). Há, portanto, uma superioridade da graça em relação ao pecado.

A primeira situação brota da liberdade do homem que, podendo escolher, prefere o pecado. A segunda situação vem de Cristo e é totalmente graça que Deus concede ao homem.
O texto do evangelho apresenta três recomendações, todas iniciadas pela palavra de Jesus “não tenham medo” ou “não temais” e está construído a partir da relação entre “encoberto/descobrir”, “oculto/conhecer”, “às escuras/luz do dia”, “ao ouvido/sobre os telhados”. Na segunda parte a relação é entre “corpo/alma”, “passarinhos/discípulos” e na última parte surge a relação entre “diante dos homens/diante do Pai celeste”, “declarar/negar”.

O desafio a vencer o medo vem sempre de Deus para animar o seu povo. Aqui é Jesus quem anima os seus discípulos para lhes mostrar que nada pode impedir que se faça o anúncio do reino. É o próprio Deus quem garante o êxito, porque ele é o dono da seara, como se lê no capítulo anterior, mas os discípulos não podem deixar de realizar a sua parte na missão, daí o chamamento à confiança vencendo o medo.

Se não devem temer porque a mensagem tem em si o êxito da missão, também não devem temer por si próprios diante dos que quiserem tirar-lhes a vida, porque a morte não é o fim para aquele que crê em Cristo. Só devem temer aquele, Deus, que é quem tem poder sobre o corpo e a alma.

Por fim, o chamamento à confiança, fundada na bondade de Deus para com as aves do céu. Esta imagem já apareceu no capítulo 6 quando Jesus convida os discípulos a não se preocuparem com o que hão de comer, beber ou vestir, concluindo que “o Pai do Céu bem sabe do que precisam”.

A confiança vem da certeza de que todas as coisas estão nas mãos de Deus, que na sua bondade ele tudo controla, “até os cabelos da sua cabeça”.

O texto conclui com uma declaração de responsabilidade. Os discípulos podem tomar a atitude de quem dá testemunho, confessando Cristo diante dos homens, ou a atitude de negar Jesus diante dos homens. A atitude que tomarem implica a responsabilidade de assumir as consequências da decisão.

Estas palavras têm como pano de fundo o que Jesus tinha afirmado anteriormente sobre serem levados aos tribunais. Nenhum julgamento dos homens é tão determinante como o julgamento de Deus. Os julgamentos dos homens têm um tempo e o julgamento de Deus é definitivo. Negar Jesus é separar-se dele por uma decisão pessoal e testemunhá-la diante dos homens é a sua confirmação. Esta decisão tem como consequências ser negado diante de Deus.

Sobre essa experiência de medo, que tem suas raízes no pecado, derrama-se, portanto, como um alívio, o anúncio de Cristo: não tenham medo.

Todo o Evangelho, e antes ainda o Antigo Testamento, está cheio disso. A Abraão Deus diz para não ter medo, na hora mesma que o chama para fora de sua terra para um país desconhecido. Aos profetas diz: não temas, eu estou contigo. A Maria ainda: não temas, encontraste graça. Aos apóstolos, enviando-os ao mundo, diz: não temais diante dos tribunais e diante das autoridades. A todos os discípulos: Não tenham medo, pequeno rebanho (Lc 12,32).

Também os homens se animam uns aos outros: não tenham medo, coragem! Mas sabemos que em seus lábios isto constitui um pobre conforto. É como alguém que treme ele mesmo e diz ao outro que está ao seu lado: por que está tremendo? Depois de tais palavras, ficamos com o medo de antes. Será que isto acontece também com o convite de Jesus, que nos convida a não ter medo?

No evangelho que meditamos hoje Jesus nos oferece também as motivações; ou seja, oferece-nos o verdadeiro remédio para nossos medos. Não tenham medo – diz – aqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma; nada no mundo – a não ser vocês mesmos – pode matar a alma. Não tenham medo, então! Bem mais que os pássaros valem vocês. No entanto, nenhum cai por terra sem a vontade do seu Pai. “O seu Pai” – o que dizer: o que fará por vocês que são seus filhos? A revelação da paternidade de Deus e a revelação de uma vida além da morte asseguram, portanto, o convite de Jesus. Todo o medo é redimensionado no momento em que Jesus traça e revela um plano da vida humana – o plano mais verdadeiro e mais pessoal do homem – em que nada o pode prejudicar, nem quem o mata. Vós podeis nos matar, mas não podeis nos prejudicar, exclamava dirigindo-se aos perseguidores o mártir São Justino nos primeiros dias da Igreja.

A perseguição atravessa as leituras deste reflexão. Jeremias é perseguido por causa da Palavra de Deus que ele anuncia com entusiasmo. O salmista é perseguido por causa de Deus, como ele próprio reconhece “por Ti tenho suportado afrontas”. No evangelho, Jesus, alerta os discípulos para a possibilidade de surgirem impedimentos ao anúncio, perseguições ao mensageiro querendo tirar-lhe a vida e, ainda, a possibilidade de negar Jesus perdendo o corpo e a alma, por causa da falta de confiança em Deus e medo dos homens.

Se os discípulos recebem de Jesus uma missão, que pode vir a ser para eles ocasião de perseguições ao ponto de lhes quererem “matar o corpo”, sabem desde o início que não estão sós. Jesus, o Mestre, está com eles na mesma missão, vai à frente deles nesse caminho e mostra o que arriscam aqueles que assumem falar de Deus, desafiando os interesses dos homens. O destino de Jesus é cada vez mais visível à medida que sobe para Jerusalém e ele não retrocede um passo.

Vencer o medo só é possível se crescer a confiança no Pai que está nos céus, que cuida das aves do céu e, mais ainda, daqueles que valem mais que muitos passarinhos. Deixar-se vencer pelo medo e negar Jesus diante dos homens, pode ser estratégia para salvar o corpo, mas é uma má estratégia, na medida em que a morte do corpo não é a morte definitiva. A morte definitiva é aquela que só Deus pode decretar, ao não reconhecer aqueles que o negaram diante dos homens para salvarem a pele.

Confiar no poder da palavra que se anuncia e naquele de quem brota essa palavra é a única decisão certa para garantir a vida. É esse o testemunho de Jeremias. Tendo que anunciar a palavra num tempo historicamente difícil, em que os homens preferem ouvir palavras enganadoras em lugar da verdade sobre o que está para acontecer, a destruição de Jerusalém, Jeremias vê-se ameaçado por todos os lados como ele próprio diz “Eu ouvia as fantasias da multidão: ‘Terror por toda a parte! Denunciai-o, vamos denunciá-lo!’”, palavras que vemos refletidas no salmo.

Nem sempre é fácil discernir de que lado ficar. Perante o perigo, obscurece-se a verdade e fragiliza-se a confiança e corre-se o risco de perder tudo, negando aquele a quem se anuncia. Esse é o risco que corre Jeremias, ao sentir que, apesar de confiar a sua causa nas mãos de Deus, sente que já não tem forças para continuar a falar de Deus.

É desse risco que Jesus alerta os discípulos quando fala das consequências de uma má decisão. Também eles podem chegar ao ponto de negar a Deus diante dos homens, por medo que matem o corpo.

Paulo recorda que somos Adão e nele padecemos da fragilidade que o pecado nos traz. Como Adão escolhemos mal, no uso da nossa liberdade, e tornamo-nos morte por causa do nosso pecado, mas podemos ser fortes se acolhermos a graça que vem de Cristo que dá vida em abundância.

Eis, portanto, o primeiro grande motivo do convite de Jesus a não ter medo: nossa vitória final que ninguém pode nos arrebatar: Não tenham medo, pequeno rebanho, pois foi do agrado de seu Pai dar-lhes o Reino! Mas Jesus no Evangelho nos revelou, com uma frase, um motivo ainda mais forte para vencer os medos: Não tenham medo, tenham confiança, porque eu venci o mundo. Ele já venceu o mundo e é nessa sua vitória que se funda a esperança de nossa vitória final. Este mundo hostil e desfigurado pelo pecado do homem, Jesus o venceu. Ouçamos o apóstolo Paulo, que fala dessa vitória: A morte foi tragada pela vitória. Onde está, ó morte, a tua vitória? Onde está, ó morte, o teu aguilhão? Ora, o aguilhão da morte é o pecado, e a força do pecado é a Lei. Graças, porém, sejam dadas a Deus, que nos dá a vitória por nosso Senhor Jesus Cristo! (1Co 15,55-57).

A raiz maligna de cada medo humano tem um nome preciso: é a morte, fruto do pecado. Jesus a venceu, expiando o pecado, todo o pecado do mundo. Venceu a morte passando por ela e esvaziando-a de todo o veneno. A morte e a Ressurreição de Cristo são penhor de nossa vitória, são fonte de nossa esperança e de nossa coragem: Se Deus é por nós, quem será contra nós […] Quem nos separará do amor de Cristo? A tribulação? A angústia? A perseguição? A fome? A nudez? O perigo? A espada? […]. Mas, em todas estas coisas, somos mais que vencedores pela virtude daquele que nos amou (Rm 8,31-37). Tribulações, angústia, perseguição e fome: a Escritura tomou conhecimento de nossos medos mais profundos, mas nos ofereceu uma saída, uma esperança de vitória, graças a Jesus Cristo, que nos amou e se entregou por nós.