A tentação de ser dono
“Agora cantarei ao meu amado o seu cântico a respeito da sua vinha. O meu amado teve uma vinha numa colina fértil. Ele cavou a terra, tirou as pedras e plantou as melhores mudas de videira. No meio da vinha ele construiu uma torre e fez também um lagar. Ele esperava que desse uvas boas, mas deu uvas bravas” Isaías 5,1-2
A vida, tão precária e passageira, é um empréstimo que se hipoteca com as decisões de cada dia. Julgar-se dono é o princípio para acumular dívida sobre dívida, gastando mal tudo o que apenas é emprestado. É também o caminho para a desgraça. Não fazer frutificar os bens que foram emprestados para gerir é também uma opção de consequências incalculáveis. Procurar o bem, o que é justo, o que dignifica, o que enriquece, é a decisão que faz a vinha produzir fruto e encontrar alegria em dar ao dono da vida os frutos que lhe pertencem.
O cântico da vinha é um poema em que o Senhor denuncia as injustiças que se praticam diariamente em Israel. O Senhor rodeia de cuidados o seu povo para que aprendam a cuidar-se mutuamente no amor e o que acontece é a injustiça. Em vez dos frutos doces do amor o Senhor encontra agraços, frutos azedos do egoísmo.
“E agora, ó moradores de Jerusalém e homens de Judá, peço que julguem entre mim e a minha vinha. Que mais se podia fazer à minha vinha, que eu não lhe tenha feito? E como, esperando eu que desse uvas boas, veio a produzir uvas bravas?” Isaías 5,3-4
Nesse início do capítulo cinco de Isaías encontra-se o texto conhecido como o “Cântico da vinha”. É frequente, no Antigo Testamento, a imagem da vinha para falar de relação entre Deus e o seu povo, como pode ver-se no salmo 80:
Trouxeste uma videira do Egito; expulsaste as nações e a plantaste. Preparaste-lhe o terreno, ela deitou profundas raízes e encheu a terra. Com a sombra dela os montes se cobriram, e os seus ramos se estenderam por cima dos cedros de Deus. Ela estendeu a sua ramagem até o mar e os seus rebentos, até o rio. Por que derrubaste as cercas que havia em volta dela, deixando que todos os que passam pelo caminho arranquem as suas uvas? (vs 8-12).
Com este cântico Isaías não pretende apresentar a difícil tarefa do agricultor no cuidado pela vinha, descrição que aparece no primeiro plano do texto. Também não é sua intenção apresentar o fracasso da relação amorosa entre um agricultor e a sua noiva, numa leitura mais pura. O “Cântico da vinha” pretende levar o leitor até à difícil relação entre Deus e o seu povo. Israel é a vinha do Senhor. O Senhor cuida da sua vinha, proporcionando-lhe todos os cuidados necessários, rodeando-a de toda a proteção, mas a vinha não dá fruto. Israel, apesar de se ver alvo de toda a atenção por parte do Senhor, verdadeiro dono da vinha, não corresponde como deve, dando o fruto desejado e esperado.
O amor do Senhor pela sua vinha, não é um amor platônico, um puro sentimento, mas verdadeira dedicação. O Senhor fez obra, agiu, atuou em favor do seu povo, lavrou-a e limpou-a das pedras, plantou-a de espécies escolhidas. No meio dela ergueu uma torre e escavou um lagar. Não foram apenas sentimentos bonitos nem palavras enganadoras. Foi um amor verdadeiro, dedicado, provado com obras. À dedicação do Senhor, Israel em vez de pagar com uvas, os frutos doces de um amor verdadeiro, paga com agraços, frutos azedos da indiferença e da rejeição.
Em que consistem os frutos, este amor esperado por Deus da parte do seu povo? Consiste na justiça. Em resposta ao seu amor, Deus espera que o Povo pratique a justiça para com o próximo. Não espera que o amem a ele, mas que amem o próximo ao ponto de praticarem a justiça e a retidão uns com os outros. No entanto, a resposta foi “só há sangue derramado e só há gritos de horror”.
Perante isto, Deus prepara um julgamento, no qual os habitantes de Jerusalém e de Judá, todo o povo, vão servir de juízes entre Deus e o seu povo. O julgamento é simples e condensa-se numa pergunta: “que mais podia fazer à minha vinha que não tivesse feito?”. O silêncio dos juízes, porque são eles o réu que está a ser julgado, são eles o povo que produziu agraços em vez de uvas, atrai a sentença do Senhor sobre eles: “vou tirar-lhe a vedação e será devastada; vou demolir-lhe o muro e será espezinhada. Farei dela um terreno deserto: não voltará a ser podada nem cavada, e nela crescerão silvas e espinheiros”.
“O javali da selva a devasta e os animais do campo se alimentam dela. Ó Deus dos Exércitos, volta-te, nós te rogamos! Olha do céu, vê e visita esta vinha! Protege o que a tua mão direita plantou, o ramo que para ti fortaleceste” Salmo 80,13-15
Sentindo a desgraça da vinha, o salmista invoca o Senhor, reconhecendo-o como o “Pastor de Israel”, para depois apresentar o povo como uma vinha destruída e escarnecida pelos inimigos. Recorda que a vinha pertence ao Senhor, que foi ele quem a plantou e lhe preparou o terreno, de tal modo que a vinha cresceu e dominou até ao mar. A vinha está destruída, devastada pelos animais selvagens e o salmista pergunta ao Senhor: “porque derrubaste os seus muros?”. No final suplica ao Senhor que volte atrás na sua decisão: “Olha do céu, vê e visita esta vinha! … Vivifica-nos, e invocaremos o teu nome. Restaura-nos, ó Senhor, Deus dos Exércitos faze resplandecer o teu rosto, e seremos salvos”.
Historicamente ou literalmente, a vinha descreve o povo hebreu. Deus escolheu este povo, o libertou do Egito e o transplantou para a terra prometida, como se transplanta uma parreira. Aqui, cercou-a de mil atenções, como faz um viticultor com seu parreiral, ou melhor, como faz o esposo com sua esposa. Cercou-a, defendeu-a. É a história evocada pelo Salmo 80 como vimos até aqui. Mas o que aconteceu? A parreira, em vez de uvas boas, produziu uvas selvagens; deixando de lado a metáfora: o povo escolhido se transviou, tornou-se selvagem, em vez de produzir obras de justiça e de fidelidade; revoltou-se e retribuiu a Deus com traições, desobediências e infidelidades: Ele esperava frutos de justiça, e eis a injustiça; esperava obras de bondade, e eis a iniquidade (cf Is 5,2).
“Quando, pois, vier o dono da vinha, que fará àqueles lavradores? Eles responderam: — Fará perecer horrivelmente aqueles malvados e arrendará a vinha a outros lavradores que lhe entregarão os frutos no tempo certo. Então Jesus perguntou: — Vocês nunca leram nas Escrituras: “A pedra que os construtores rejeitaram, essa veio a ser a pedra angular. Isto procede do Senhor e é maravilhoso aos nossos olhos”? — Portanto, eu lhes digo que o Reino de Deus será tirado de vocês e entregue a um povo que lhe produza os respectivos frutos. — “Portanto, eu lhes digo que o Reino de Deus será tirado de vocês e entregue a um povo que lhe produza os respectivos frutos” Mateus 21,40-43.
Na versão de Jesus, a aplicação é mais transparente. São os vinhateiros que se rebelam, não a videira; isto é, as pessoas, não a terra. O que fará agora Deus? Segundo Isaías, destruirá a vinha. O Salmo 79 descreve este abandono de Deus que se manifestou na queda de Jerusalém e no exílio. Jesus, porém, não fala da destruição da vinha. Não são as promessas de Deus, isto é, seu plano, que serão mudadas, mas os destinatários: o Reino de Deus, a vinha fica, mas será dado a outro povo. É uma alusão clara ao destino do povo de Israel: tendo recusado os profetas e maltratado “o Filho”, ele vai ser disperso e o herdeiro das promessas será outro povo.
O povo a quem foi confiado o Reino somos nós, cristãos, que formamos a Igreja. Nós somos agora, em sentido especial, a vinha de Deus. Aqui começa a leitura atual da parábola.
Para nós o significado da Palavra de Deus hoje deve ser procurado naquela frase do Evangelho de João: “— Eu sou a videira, vocês são os ramos. Quem permanece em mim, e eu, nele, esse dá muito fruto; porque sem mim vocês não podem fazer nada. Se alguém não permanecer em mim, será lançado fora, à semelhança do ramo, e secará; e o apanham, lançam no fogo e o queimam” (Jo 15,5-6). Com Cristo a coisa mudou. Deus não rejeitará mais sua vinha – a Igreja – porque esta vinha é Cristo; a Igreja é o corpo de Cristo. Não haverá um terceiro povo de Deus, depois do de Israel e do cristão. Mas atenção: se a videira está certa do amor do Pai, assim não acontece com um dos ramos; se a Igreja está certa da promessa que nunca acabará até o fim dos séculos e que “as portas do inferno não prevalecerão contra ela”, não será assim para os que compõem a Igreja individualmente ou por grupos dela. Se não produzem fruto, eles podem ser cortados e jogados fora. Podem decair de sua posição. Este foi o drama de inteiras porções da Igreja, como as igrejas da Ásia Menor, às quais se dirige João no Apocalipse.
Este é o risco que corremos nós, cristãos de hoje, seja como indivíduos, seja como comunidades. São Paulo, um dia, em vista da resistência dos judeus exclamou: Pois bem, iremos aos pagãos (cf At 13,46). Se hoje, também, Deus transplantasse sua vinha para lugares onde produzisse mais fruto, por exemplo, no “terceiro mundo”?
Não está se dando entre nós, povos cristãos do Ocidente, uma tácita recusa do Filho? A Deus não interessa que fique de pé uma cultura cristã por causa da qual “não podemos não nos chamar cristãos”; interessa que permaneça a fé em Jesus Cristo, a aceitação de sua Palavra. Se esta faltar como videira, somos já rejeitados, somos galhos secos.
A Palavra de Deus é ainda mais séria se aplicada a cada um de nós. Deus nos deu tudo. Plantou-nos na Igreja, enxertados em Jesus Cristo no Batismo, podou-nos e nos alimentou. Agora, tem direito de vir pedir os frutos. E vem, com efeito, também se nós não percebemos suas visitas. Vem como o dono vinha procurar figos em sua árvore e não encontrava senão folhas. Todo ramo que não der fruto, em mim, ele o cortará; e podará todo o que der fruto, para que produza mais fruto (Jo 15,1-2).
A Palavra de Deus se nos apresenta hoje feita espada que penetra em nós e nos obriga a tomar posição, coloca-nos em estado de ter de decidir. O que queremos ser? Um ramo unido a Cristo, à sua Palavra, à vida no Espírito? É preciso permitir que sonde nosso coração e veja se há algum caminho mal (motivações e imaturidade); isto ocorre conduzindo-nos pelo deserto (adversidades) para revelar o real estado de nossa alma; o Espírito ilumina nossa inteligência e inflama nossa vontade para, pela humildade e contrição, conduzir-nos a um estado de crescimento (e, por isso, de conversão). Ou nos tornaremos um ramo estéril, coberto de folhas, isto é, um cristão de aparências, não de fatos?
“Não fiquem preocupados com coisa alguma, mas, em tudo, sejam conhecidos diante de Deus os pedidos de vocês, pela oração e pela súplica, com ações de graças. E a paz de Deus, que excede todo entendimento, guardará o coração e a mente de vocês em Cristo Jesus” Filipenses 4,6-7
A vida em comunidade é muitas vezes ocasião para alguns desentendimentos e discórdias. Paulo recorda aos filipenses que não podem permitir que as dificuldades os perturbem e exorta-os a procurar, na oração, a paz que vem de Cristo. Chamados a viver na alegria, os cristãos não podem permitir que as dificuldades se sobreponham ao amor fraterno, porque o Senhor está próximo, está no coração da comunidade e é ele quem guarda os corações e os pensamentos de cada um.
A preocupação de todos deve ser a busca de tudo “o que é verdadeiro e nobre, tudo o que é justo e puro, tudo o que é amável e de boa reputação, tudo o que é virtude e digno de louvor”, (cf vss 8-9) pois foi isso que aprenderam de Paulo e devem praticar.
Há os que se consideram donos deste mundo, donos da Igreja, senhores entre o povo de Deus e merecedores de todos os frutos, sem ter que dar contas a ninguém.
Não produzir frutos é grave, porque significa uma atitude de indiferença para com o amor daquele que cuida da vinha com todo o carinho, cheio de preocupação. A indiferença para com o amor tem como consequência a experiência do abandono, da solidão, de tristeza e pobreza. Uma terra que não é cuidada, uma vida onde não há amor, torna-se um terreno abandonado, baldio, onde se despeja toda a espécie de entulho, “nela crescerão silvas e espinheiros”, “devastou-a o javali da selva e serviu de pasto aos animais do campo”.
Chamar seu aos bens do Senhor, é apoderar-se de um bem alheio que, para garantir a posse, tem que se lutar com todas as armas provocando a morte em todas as frentes. A vinha tem um proprietário, é do Senhor. Habituamo-nos rapidamente a chamar nosso ao que não nos pertence senão por empréstimo. É a “minha” mãe, o “meu” pai, o “meu” filho, o “meu” marido e a “minha esposa”, a “minha” casa, a “minha” terra e com ainda mais intensidade, a “minha” vida. Donos de tudo não queremos dar contas a ninguém “a vida é minha, faço o que quiser”, “sou livre, não tenho que prestar contas a ninguém”.
A verdade é que é tudo emprestado, passageiro, temporal e precário.
A parábola do evangelho recorda que o Senhor, o dono da vinha, tem uma paciência infinita, não responde com ameaças, nem atua em vingança contra aqueles que não o querem reconhecer como dono e pretendem ficar com os frutos e a vinha.
Mas também recorda que chegará o momento em que tudo será tirado àqueles que não pretendem prestar contas, para ser entregue a outros que entreguem os frutos a seu tempo.
A sentença dos ouvintes de Jesus é a morte daqueles malvados, a decisão do dono da vinha não é a morte, porque espera contra toda a esperança a conversão daqueles vinhateiros, mas não lhes permite usufruir para sempre dos frutos da vinha que não lhes pertence.
A comunidade cristã corre sempre o risco de alguns levarem longe demais a tentação de se julgarem donos. Donos da verdade, donos do destino, donos das decisões, donos da comunidade. Há efetivamente pessoas que, por não discernirem suficientemente a vontade do Espírito querem transformar a comunidade no que ela não é, tornando-se incapaz de produzir os frutos desejados. Mas esse risco não pode levar outros a quererem ser os donos do discernimento, de modo que tomam todas as decisões sem escutar os demais, e ficarem com os louros, os frutos, todos para si próprios.
A verdadeira comunidade cristã, procura o que há de bom em cada um dos seus membros e valoriza-o, permitindo que sirvam todos o bem da comunidade. Valorizando o que é bom, perde força o que é mau, de modo que não se torna motivo para divisões, discórdias e marginalizações.
Expulsar, lançar fora da vinha e matar não é próprio da comunidade de Jesus. O dono da vinha quer frutos e não destruição. O segredo está em deixar entrar o Senhor na sua vinha, permitir que o seu rosto brilhe sobre todos e seja para todos a salvação.
Nada é meu, Senhor, nem a vida, nem os bens, nem as minhas capacidades, nada é meu. Não sou dono do meu passado, do presente nem do futuro. Não posso tomar a vida nas mãos e chamar-lhe minha, porque ela é como o dia de ontem que já passou. Ensina-me a dar graças por tudo o que sou, e a sentir alegria de ser todo teu e nada meu e de entregar nas tuas mãos o fruto do meu esforço diário, para sermos todos a vinha que tu amas e pela qual permitiste a morte de teu filho.