Agora que dominara a tentação suprema de se tornar o rei dos homens por encher suas
barrigas, por arrebatá-los com maravilhas científicas e por fazer um acordo político com o
príncipe das trevas, Nosso Senhor estava pronto para pôr-Se diante do mundo como a vítima
sacrificial pelo pecado. Após o longo jejum e a provação, vieram anjos e O auxiliaram (cf Lc 4,1-
14). Depois disso, retornou ao rio Jordão e misturou-Se, sem ser notado por um tempo, à
multidão que cercava João Batista. No dia anterior, João falara de Nosso Senhor para uma
delegação de sacerdotes e levitas do templo de Jerusalém que vieram perguntar-lhe: “Quem
és?”. Sabiam que chegara o tempo oportuno para a vinda do Cristo ou do Messias, daí a
pergunta objetiva. João disse-lhes, todavia, que “não era o Cristo”. Era simplesmente uma voz
a pregar a Palavra. Assim como Cristo recusou títulos exteriores de poder, João também
recusou os títulos que os fariseus estavam dispostos a conferir-lhe, mesmo o maior de todos,
de que era o enviado de Deus.
No dia seguinte, Nosso Senhor estava no meio da multidão e João O viu ao longe.
Imediatamente, João retomou a herança simbólica e profética dos judeus, conhecida por
todos os ouvintes.


Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. (São João 1,29)


Essa primeira apresentação de Jesus: Eis o Cordeiro de Deus […] ficou impressa na mente do
evangelista, de modo que ele continuou a vê-lo e a chamá-lo assim. “Cordeiro de Deus se
tornou um dos nomes prediletos para designar o Mestre, um nome pelo qual se esforça para
penetrar mais a fundo a personalidade de Jesus.
Há uma parte, aliás, uma grande parte, do evangelho que quase se aglutinou em torno deste
título do Senhor, e nós devemos analisá-la para compreendê-la e dela nos nutrir. Se formos
capazes de consegui-lo, faremos que penetre um fragmento vivo do Evangelho em nosso
coração.
O que nos diz de Jesus o título “Cordeiro de Deus”? O Antigo Testamento conhecia duas
figuras de cordeiro: um verdadeiro e um metafórico. O cordeiro real era que na noite do
êxodo, por mandato de Deus, foi imolado no Egito e cujo sangue libertou o povo da escravidão
e o fez passar para a liberdade da Terra prometida. Depois daquele fato, cada ano, na Páscoa,
o povo hebreu, família por família, imolava um cordeiro e depois, durante a noite, o comia
comunitariamente, para recordar sua libertação da escravidão do Egito.
O cordeiro metafórico ou figurativo era “o cordeiro mudo conduzido à morte”, do qual havia
falado o profeta Isaías, anunciando nele o servo de Javé que teria salvado Israel e os povos.
Algo novo se diz deste cordeiro em relação ao outro tipo, algo que amplia sem medida sua
missão: Mas ele foi castigado por nossas iniquidades; o castigo que nos salva pesou sobre ele;
fomos curados graças às suas chagas (Is 53,5). Portanto, não é mais apenas um cordeiro que
resgata um povo da escravidão social e política em relação a outro povo, mas um cordeiro que
liberta todos os povos da perdição, tomando sobre si todos os seus pecados.
Quando os ouvintes escutaram João Batista exclamar: Eis o cordeiro de Deus, que tira o pecado
do mundo, compreenderam isto: que finalmente havia chegado ao mundo aquele que Deus
tinha ensinado a esperar como o libertador, o redentor de todos os homens, aquele que está
diante de Deus como representante de todos e que paga por todos. Acolhendo aquele grito no

início de seu evangelho, João, o discípulo amado, antecipa e pronuncia o destino final de Jesus:
coloca já tudo sobre a cruz. Aquele cordeiro, segundo a profecia, deverá ser traspassado por
nossos pecados. Por isso, no Calvário, no momento do golpe da lança, João irá se preocupar de
recordar-nos ainda uma vez que ele é o Cordeiro de Deus. Fará isto aplicando a Jesus a
prescrição de Êxodo 12,46 (“Nenhum osso lhe será quebrado”) que se referia precisamente ao
cordeiro pascal evocando implicitamente o cordeiro místico de Isaías 53, “traspassado por
causa de nossas transgressões”.
João afirmava que não devemos buscar primeiro um mestre, um doador de preceitos morais
ou um operador de milagres. Devemos, em primeiro lugar, olhar para Aquele que foi nomeado
como sacrifício pelos pecados do mundo. A Páscoa se aproximava e as estradas estavam
repletas de pessoas conduzindo ou levando ao templo cordeiros de um ano de idade para o
sacrifício. À plena visão daqueles cordeiros, João indicou o Cordeiro que, quando sacrificado,
poria fim a todos os sacrifícios no templo porque tiraria os pecados do mundo.
João era a voz de despedida do Antigo Testamento, em que o cordeiro exercia um papel
importante. No Gênesis encontramos Abel oferecendo um cordeiro, o primogênito do
rebanho, em sacrifício de sangue para a expiação do pecado. Posteriormente, Deus pediu a
Abraão que sacrificasse seu filho Isaac — um símbolo profético do Pai do Céu a sacrificar o
próprio Filho. Quando Isaac perguntou “onde está a ovelha para o holocausto?”, Abraão
respondeu:
Deus providenciará ele mesmo uma ovelha para o holocausto, meu filho. (Gênesis 22,8)
A resposta à pergunta “Onde está a ovelha para o holocausto?” feita no início do Gênesis era,
agora, respondida por João, o Batista, ao apontar para o Cristo e dizer: “Eis o Cordeiro de
Deus”. Deus, por fim, providenciara um cordeiro. A cruz que fora defendida no deserto
durante as tentações agora se apresentava no Jordão.
Todas as famílias procuravam ter o próprio cordeiro pascal e, aqueles que no momento
levavam seus cordeiros para Jerusalém, onde o Cordeiro de Deus disse que seria sacrificado,
sabiam que o cordeiro era um símbolo da libertação de Israel da escravidão política do Egito.
João dizia que o cordeiro também era um símbolo de libertação da escravidão espiritual do
pecado.
O cordeiro viria na forma de um homem, pois o profeta Isaías anunciara:
Foi maltratado e resignou-se; não abriu a boca, como um cordeiro que se conduz ao
matadouro, e uma ovelha muda nas mãos do tosquiador. (Ele não abriu a boca.) (Isaías
53,7)
Com frequência, o cordeiro era usado como sacrifício devido à sua inocência e brandura;
portanto, foi o emblema mais apropriado ao caráter do Messias. O fato de João Batista chamá-
Lo de Cordeiro de Deus é bastante significativo. Ele não era nem o cordeiro do povo, nem o
cordeiro dos judeus, nem o cordeiro de algum dono humano, mas o Cordeiro de Deus.
Quando, por fim, o Cordeiro foi sacrificado, não foi por ser a vítima daqueles que eram mais
fortes do que Ele, mas, antes, porque cumpria voluntariamente Seu dever de amar os
pecadores. Não foi o homem que ofereceu esse sacrifício, embora tenha sido o homem quem
matou a vítima; foi Deus que deu a Si mesmo.
Pedro, mais tarde, esclareceria o sentido de “Cordeiro”, ao escrever:

Pois vocês sabem que o resgate para salvá-los do estilo de vida vazio que herdaram de
seus antepassados não foi pago com simples ouro ou prata, que perdem seu valor, mas
com o sangue precioso de Cristo, o Cordeiro de Deus, sem pecado nem mancha (1 Pedro
1,18-19).
Depois da Ressurreição e da Ascensão, o apóstolo Filipe encontrou um mensageiro da rainha
da Etiópia. O mensageiro estivera lendo uma passagem do profeta Isaías que anunciava o
Cordeiro:
Como ovelha, foi levado ao matadouro; e como cordeiro mudo diante do que o tosquia,
ele não abriu a sua boca. (Atos dos Apóstolos 8,32)
Filipe explicou-lhe que esse Cordeiro acabara de ser sacrificado, ressuscitara dos mortos e
ascendera aos céus. São João, o Evangelista, que também estava no rio Jordão naquele dia
(pois era um dos discípulos de João Batista), mais tarde esteve aos pés da Cruz quando o
Cordeiro foi sacrificado. Anos depois, escreveu que o Cordeiro morto no Calvário foi, por
intenção, morto desde o princípio do mundo. A Cruz não foi acrescida mais tarde.
Que foi morto antes da criação do mundo. (Apocalipse 13,8)
Isso significa que o Cordeiro foi morto, por assim dizer, por decreto divino desde toda a
eternidade, ainda que a realização temporal tivesse de aguardar o Calvário. Sua morte estava
de acordo com o plano eterno e a intenção determinada de Deus. O princípio do amor que se
autossacrifica, contudo, era eterno. A redenção estava na mente de Deus antes de ser
instituída a fundação do mundo. Aquele que estava fora do tempo viu, da eternidade, a queda
dos homens no pecado e os viu ser redimidos. A própria terra seria palco de um grande
acontecimento. O cordeiro era o tipo primordial eterno de todo sacrifício. Quando chegou a
hora da Cruz e o centurião traspassou a lança na lateral do corpo de Nosso Senhor, então se
cumpriu a profecia do Antigo Testamento.
Farão lamentações sobre aquele que traspassaram. (Zacarias 12,10)
A expressão que João Batista utilizou para descrever como o Cordeiro de Deus “tiraria” os
pecados do mundo encontra paralelo em hebraico e em grego; o Levítico narra que
o bode levará, pois, sobre si, todas as iniquidades deles para uma terra selvagem.
Quando o bode tiver sido mandado para o deserto. (Levítico 16,22)
Assim como o bode expiatório em que foram depositados os pecados foi conduzido para fora
da cidade, do mesmo modo, o Cordeiro de Deus que realmente tirou os pecados do mundo
seria conduzido para fora de Jerusalém.
Dessa maneira, o cordeiro que Deus prometera dar a Abraão para o sacrifício e todos os
cordeiros e bodes subsequentes oferecidos por judeus e pagãos ao longo de toda a história
extraem seu valor do Cordeiro de Deus que se postou diante de João. Aqui, não foi Nosso
Senhor que estava profetizando a Cruz; antes, era o Antigo Testamento, por intermédio de
João, que O declarava o sacrifício divinamente escolhido pelos pecados e o único a redimir a
culpa humana.
Os israelitas há muito haviam percebido que o perdão dos pecados estava, de algum modo,
relacionado a oferendas sacrificiais; portanto, vieram a supor que havia alguma virtude
intrínseca na vítima. O pecado estava no sangue; por isso o sangue tinha de ser derramado.

Não é de admirar, então, que quando a Vítima foi oferecida no Calvário e ressuscitou dos
mortos, reafirmou quanto Lhe era necessário sofrer. Aplicar os méritos desse sangue redentor
a nós mesmos tornou-se o tema do Novo Testamento. No Antigo Testamento, quando os
cordeiros eram sacrificados, parte do sangue era aspergido sobre as pessoas. Quando o
Cordeiro de Deus veio a ser sacrificado, alguns perguntaram novamente pela aspersão do
sangue, de maneira horrivelmente irônica!
Caia sobre nós o seu sangue e sobre nossos filhos! (São Mateus 27,25)
No entanto, milhões de outros também encontrariam a glória por causa da aspersão do
sangue do Cordeiro. João Evangelista, posteriormente, O descreveu em termos de glória
eterna.
Na minha visão ouvi também, ao redor do trono, dos animais e dos anciãos, a voz de
muitos anjos, em número de miríades de miríades e de milhares de milhares, bradando
em alta voz: Digno é o Cordeiro imolado de receber o poder, a riqueza, a sabedoria, a
força, a glória, a honra e o louvor. E todas as criaturas que estão no céu, na terra,
debaixo da terra e no mar, e tudo que contêm, eu as ouvi clamar: Àquele que se assenta
no trono e ao Cordeiro, louvor, honra, glória e poder pelos séculos dos séculos. E os
quatro animais diziam: Amém! Os anciãos prostravam-se e adoravam. (Apocalipse 5,11-
14)
Jesus não deixou seu título e suas aparências de Cordeiro nem com sua morte. Ele tinha sido
esperado no Antigo Testamento, como o cordeiro imaculado que devia vir (cf 1Pe 1,19); agora,
depois de sua ressurreição, ele espera a humanidade como “o Cordeiro sentado sobre o
trono”. Fica à sua espera e a acompanha do alto até que sejam reunidos ao redor de seu trono
todos os assinalados da terra, isto é, todos os que levam a marca de seu sangue. , Assim, o
próprio João nos apresenta o Senhor no Apocalipse como o Cordeiro traspassado e em pé (cf
Ap 5), isto é, morto e ressuscitado, que aguarda a esposa para as núpcias eternas: Felizes os
convidados para a ceia das núpcias do Cordeiro (Ap 19,9), ou seja, aqueles que irão se reunir
com o Senhor nos novos céus; felizes, porque lá será enxugada toda lágrima, não haverá
morte, nem dor, nem choro (cf Ap 21,4).
A Palavra de Deus nos oferece, portanto, uma síntese da nossa fé, em que o passado confirma
o futuro. As promessas e profecias antigas fielmente realizadas em Jesus, verdadeiro Cordeiro
de Deus, se tornam garantia de que também a parte ainda não realizada de suas promessas
cumprir-se-á fielmente.
Mas também uma demonstração de vida, isto é, algo que estimula nossa vontade e nossa
mentalidade. Jesus é o Cordeiro de Deus que tira os pecados. Para ser salvo por ele é preciso,
portanto, reconhecer-se e sentir-se pecadores. Ela não veio para os justos; com estes não tem
o que fazer. Não é um complexo de culpa que devemos nos criar antes, com a finalidade de
sentir depois o lenitivo (consolo) do perdão, ou permitir a Cristo salvar-nos. Somos pecadores
por natureza, por nascimento. Todos nós tropeçamos frequentemente, diz a Escritura (cf Tg
3,2). Não se deve desviar o olhar da realidade e não fugir dela como Adão. É preciso que nos
levantemos como o pródigo, e nos dirijamos ao Senhor para lhe dizer: “Pai, pequei”. Para
estes, Jesus é o Cordeiro que tira os pecados; os outros, diz João no Apocalipse, conhecerão
somente a ira do Cordeiro (Ap 6,16). Como pode Jesus salvar quem crê de ser sempre credor
de Deus e dos homens, como o fariseu do templo? É por isso que a Igreja se empenha para nos
educar a um sadio sentimento de culpa, isto é, a sentir-nos que somos realmente pecadores.
Não é sem motivo o convite: “Irmãos, reconheçamos os nossos pecados”!

Esta tentação de não nos reconhecer pecadores está sempre nos espreitando, até mesmo
desde o tempo de Adão, que se desculpa e foge em vez de confessar: pequei. Hoje se
acrescentou outra mais enganadora. Percebe-se, admite-se a culpa, a que se costuma chamar
complexo, não mais pecado, e para retirá-la da alma não se recorre mais, em certos
ambientes, ao Cordeiro que tira os pecados, mas ao terapeuta da alma; não só o psicanalista,
que remove as inibições e dissipa os complexos, mas o que é pior, ao invés de confessor se
oferece ‘coachings’ tão somente com objetivo de desenvolvimento pessoal, oferecendo auxílio
para atingirem suas metas pessoais e profissionais. Entenda, essas funções certamente,
nobilíssimas a do psiquiatra, do psicólogo e do Coaching; filhos de um século de alma
contorcida e doente, mas não lhes cabe convencer o homem de que não existe pecado. Se o
faz o engana. “Nós sabemos – se não sabemos, quer dizer que a fé esvaiu-se, desapareceu de
nosso horizonte – que para a doença da alma que se chama pecado há um único médico: Jesus
Cristo nosso Senhor” (Inácio de Antioquia – entre 68 e 107 d.C., discípulo do apóstolo João,
também conheceu São Paulo e foi sucessor de São Pedro na igreja em Antioquia). Ele morreu
na cruz para conquistar o direito de proclamar-se tal, para nos perdoar sempre de tudo.
A Eucaristia (Ceia do Senhor) que agora celebramos unifica tudo o que dissemos até aqui. Ela
torna presentes entre nós o cordeiro libertador do Êxodo, o cordeiro redentor de Isaías,
traspassado por nossos pecados, o Cordeiro que um dia João Batista apontou aos presentes, o
Cordeiro da Cruz e o Cordeiro que nos espera sobre o trono. Torna-nos presente e vivo tudo isso.