Para entender o tema central que destacamos no título dessa reflexão meditaremos na parábola do fariseu e do publicano (Lc 18:9-14); é necessário considerar a introdução e a conclusão: Jesus também contou esta parábola para alguns que confiavam em si mesmos, por se considerarem justos, e desprezavam os outros […] Digo a vocês que este desceu justificado para a sua casa, e não aquele. O cerne do problema está contido nas palavras “justos” e “justificados” e pode ser formulado assim: De que forma somos salvos? Qual é o caminho que conduz à salvação? Trata-se, em outras palavras, do grande problema da justificação.

À pergunta – “Como nos salvamos?” – os fariseus, ao menos os que Jesus tem em mente neste texto, respondiam: “Observando a Lei”. Jesus responde: “Não!” A salvação não brota da observância, mas de algo diferente; é um dom de Deus que exige, como condição necessária e suficiente, somente a fé (não é por acaso que antes e depois da parábola do fariseu, Lucas transcreve a sentença de Jesus: A tua fé te salvou!). Na oração do fariseu, o sujeito é o “eu” (eu jejuo, eu pago o dízimo, eu não sou como os outros); na oração do publicano o sujeito é Deus (“Meu Deus, tem piedade de mim”); no primeiro caso, o protagonista da salvação é o homem, no segundo é Deus.

Estamos como num divisor de águas, em dois campos diferentes: de um lado a lei, de outro o Evangelho. Compreende-se então a importância desse confronto. Para nós se trata de colocar-nos do lado certo; é fácil que um cristão, com efeito, viva na realidade num regime da lei antes que num regime evangélico; no Antigo, antes do Novo Testamento, com ânimo de escravo, antes do que de filho. Possivelmente sejam a maioria aqueles que não superam conscientemente aquele campo para colocar-se neste horizonte novo, onde se respira ar de liberdade, de fé e de graça. São recaídas que acontecem; as grandes verdades da fé são mais difíceis de ser mantidas do que de ser descobertas.

Aconteceu algo parecido também para os hebreus: os profetas, no Antigo Testamento, tinham chegado perto da perspectiva evangélica, mas sua lição foi esquecida, e assim se chegou ao tempo de Jesus com aquela estranha mentalidade legalista contra a qual ele teve de combater tão duramente toda a vida. Uma lição, por isso, a que nos chega pela parábola do fariseu, extremamente atual também para nós cristãos de hoje.

Já formulamos o princípio: a justificação e a salvação vêm da fé em Jesus. Agora devemos compreender isto; compreender significa envolver de todos os lados, possuir, abraçar, tornar nosso, entender-se o quanto é possível à nossa mente e com a ajuda do Espírito Santo. Quem nos guiará nessa turnê pelo Evangelho? O apóstolo São Paulo! Ele é o mestre insuperável neste assunto; Jesus, podemos dizer, escolheu para si este homem, preparou-o de longe, “desde o seio materno”, para que explicasse bem à sua Igreja qual era seu pensamento dominante. Devemos bater à porta de Paulo; Paulo apresenta a grande vantagem de poder nos falar por experiência; eu, ele nos diz, era um fariseu mais ou menos igual àquele que agora vocês conhecem através da parábola; hebreu de tronco palestinense, circuncidado no oitavo dia, “irrepreensível quanto à justiça que se deriva da observância da lei”. Depois, um dia, abri os olhos; ou antes, alguém me abriu. De repente, tudo aquilo que antes me parecia uma vantagem se tornou uma perda, quase um lixo; então deixei de procurar “uma minha justiça derivada da lei” e comecei a procurar “a que deriva da fé em Cristo” (cf Fp 3:5-9). Paulo fez a primeira exegese da parábola do fariseu e do publicano e a fez de sua vivência porque viveu pessoalmente ambas as situações.

A intuição fundamental esboçada neste texto essencial foi desenvolvida por Paulo em duas grandes cartas, aos Gálatas e aos Romanos; hoje nos é oferecido a ocasião de lançar finalmente um olhar sobre essas duas famosas cartas, especialmente a dos Romanos, e este é sempre um evento para uma comunidade cristã. Nós, judeus por natureza e não pecadores dentre os gentios, sabendo, contudo, que o homem não é justificado por obras da lei, e sim mediante a fé em Jesus Cristo, também temos crido em Cristo Jesus, para que fôssemos justificados pela fé em Cristo e não por obras da lei, pois por obras da lei ninguém será justificado (Gl 2:15,16); não há, portanto, de um lado justos e de outro pecadores, como pensavam os fariseus; todos pecaram e todos estão privados da glória de Deus, e são justificados gratuitamente por sua graça; tal é a obra de redenção, realizada em Jesus Cristo (Rm 3:23,24). Nestes textos nunca faltam, como se vê, algumas palavras-chave: justiça, fé, graça, Jesus Cristo. A “justiça de Deus” da qual se fala aqui é algo muito diferente da justiça humana, que contém a ideia de punição ou de recompensa (fazer justiça, obter justiça); ela significa, ao invés, um ato gratuito e soberano com o qual Deus salva em virtude de sua promessa; um ato com o qual Deus faz justiça, antes de tudo, a si mesmo, honrando a própria palavra e a própria graça (foi esta a grande ideia de Paulo redescoberta por Lutero).

Estamos assim na época da fé: o justo vive pela fé; a fé é descoberta como o caminho magistral da salvação também no Antigo Testamento: Acreditou Abraão em Deus, e isto lhe foi levado em conta de justiça (cf Rm 4:1-3). Somente a fé é a resposta adequada à grande confiança que primeiro Deus teve em nós. Estamos, contemporaneamente, na exaltação plena de Jesus Cristo, porque é ele agora o conteúdo e o centro da fé, ele, morto e ressuscitado; sua cruz é toda a grandeza, a glória, a esperança e a ousadia dos que creem.

A este ponto poderia nascer um problema. E as obras, então, nada valem? O pecado é insignificante em tudo isto? Com efeito, foi o que aconteceu; aliás, não se tratou só de um problema, mas de uma verdadeira crise para a Igreja. A justificação mediante a fé era como um grande obelisco erguido no meio da Igreja; era inevitável que oscilasse um pouco para um lado e para o outro, antes de encontrar seu equilíbrio definitivo (quem sabe se já o encontrou!).

Houve primeiro uma oscilação, por assim dizer, para o lado extremo oposto da crença judaica, deixando de lado completamente as boas obras e a observância da Lei. O autor da carta de Tiago se encarregou de denunciar o fato com grande vigor: De que aproveitará, irmãos, a alguém dizer que tem fé, se não tiver obras? […] a fé: se não tiver obras, é morta em si mesma (Tg 2:14-17). Para Tiago, as obras são necessárias exatamente para manter acesa a fé, mas não se preocupa em explicar o porquê; basta-lhe restabelecer o equilíbrio, afirmando a necessidade de uma e outra coisa, seja da fé, seja das boas obras.

Outra crise, esta vez muito mais dramática, aconteceu, pelo mesmo motivo, com o cisma protestante. A Lutero pareceu, e não sem alguma razão, que na Igreja de seu tempo se tivesse ofuscado ao menos na prática, a intuição de São Paulo de justificação mediante a fé e se colocado demasiada confiança na contribuição do homem na salvação (boas obras, penitências, méritos, indulgências etc). Definiu, então, a carta de Tiago como “uma carta de palha” e, ao grito de sola fide, somente por fé, iniciou a Reforma protestante que partiu em dois troncos o cristianismo ocidental. A esta nova oscilação do obelisco, desta vez no outro extremo, seguiu-se assim, com Lutero, outra mais violenta oposição que provocou a ruptura.

Hoje, no clima de diálogo entre cristãos dispostos a viver o amor de Cristo, se instaurou entre católicos e protestantes, séria reflexão sobre o tema nos dando conta de que o problema não era, e não é, o de escolher entre Paulo e Tiago, mas o de compreender melhor o próprio Paulo e, aliás, através dele, o próprio Jesus. Jesus, com efeito, não desqualificou as obras boas que o fariseu citava ter cumprido; aliás, insistiu na importância da observância dos mandamentos de Deus e, em infinitos modos (veja por exemplo Mt 25!), inculcou as obras de penitência e de misericórdia, não excluindo o jejum e a esmola que eram tão caros ao fariseu. O apóstolo Paulo tem palavras muito duras contra aqueles que faziam da liberdade um véu para cobrir a preguiça e a indolência (cf Gl 5:13), ou que iam dizendo: Tudo me é permitido (1Co 6:12). Ele une sempre fé e obras boas; a fé, para ser autêntica, deve traduzir-se em amor (cf Gl 5:6), onde amor não significa somente uma atitude interior, mas também obras ativas a serviço dos outros (sejam servos uns dos outros, pelo amor: Gl 5:13). Mesmo que tivesse toda a fé – chega a dizer – a ponto de transportar montanhas, se não tiver amor, não sou nada (1Co 13:2). Se para o fariseu era importante fazer obras boas, para alguém que acreditou na graça de Cristo o é muito mais; chega a sê-lo até mesmo ao quadrado (Não nos salvamos pelas obras, mas não nos salvamos sem as obras!).

Onde está, então, a diferença? Onde errava o fariseu? Em considerar que as boas obras fossem a “causa” da justificação, ao passo que, também quando são sinceras, não passam do “efeito”. Não é uma diferença de somenos importância; trata-se de decidir se Deus é devedor ou credor em relação ao homem. Está em jogo a natureza mesma de Deus, sua santidade e sua liberdade. Na oração do fariseu (e em qualquer pessoa que acredita salvar-se com seus próprios méritos) há a tentativa, inconsciente, mas real, de inverter as posições entre Deus e o homem, impondo a Deus, ele, o Criador de tudo, o papel de devedor, de alguém que é obrigado a retribuir. Quem lhe fez o dom – diz Deus – para receber em troca? (cf Rm 11:35); os seus famosos “atos de justiça” nada mais são, aos meus olhos, do que “panos imundos” (cf Is 64,5).

Abriu-se, assim, um horizonte para entender o sentido e o empenho pessoal na obra de salvação; este empenho é uma resposta, uma consequência lógica, mas, como tal, necessária; para uma criança, respirar com os próprios pulmões é uma consequência de ter nascido, mas é necessário para permanecer viva. Mediante a fé e o batismo fomos gerados para uma nova vida, entramos, por assim dizer, num mundo novo que é aquele inaugurado por Jesus mediante sua morte e sua ressurreição. Aqui reina uma lógica nova; não mais: devo fazer ou evitar fazer isto para me salvar; mas: devo fazer e evitar fazer isto porque fui salvo; porque o contrário – o pecado – é absurdo (a palavra é do próprio Paulo em Rm 6:15); é como inserir a morte na vida; é um suicídio! Fomos, pois, sepultados com ele na sua morte pelo batismo para que, como Cristo ressurgiu dos mortos pela glória do Pai, assim nós também vivamos em novidade de vida (Rm 6:4).

Esta nova lógica é a lógica do amor: devo amor porque fui amado. É o “amor de Cristo” (não mais a Lei) que me leva a agir, a sacrificar-me, a doar-me (cf 2Co 5:14); não estamos mais na lógica dos fariseus, eu te dou para que você me dê, mas na lógica evangélica que se expressa assim: Dou a ti porque tu me deste. A prioridade e a gratuidade do dom de Deus resplandecem em seu justo lugar; a criatura, aceitando-se como criatura, permite a Deus ser Deus e ser amada por Deus: Mas amamos porque Deus amou primeiro (1Jo 4:19). É aqui que a fé se desdobra em obras boas: se Deus nos amou, também devemos amar uns aos outros, e amar-nos não só “de palavras, mas por ações e verdade(cf Jo 3:18; 4:11).

É este nosso modo de dizer “sim” ao amor de Deus; sem este sim, Deus é obrigado a parar sua ação a nosso respeito, porque não quer agir “contra” mas “com” nossa liberdade: a fé acaba por falta de oxigênio, de respiro, e se torna “morta”; exatamente o que dizia o apóstolo Tiago. Nenhum “sim” é verdadeiro e profundo para nós enquanto não é expresso, de alguma forma, através da cruz do sofrimento e da fadiga. Cada obra boa que fazemos, também a mais pequena, como dar um copo de água a quem tem sede, é um sim que dizemos a Deus, e por isso, à nossa salvação; é um permitir a Deus ir adiante no seu projeto sobre nós. Eis como fé e obras se casam e delas nasce “a criança Esperança”, e nós entoamos o hino ao amor vitorioso de Deus que nos salvou em Cristo Jesus: Quem poderia acusar os escolhidos de Deus? É Deus quem os justifica […] Quem nos separará do amor de Cristo? […] Mas, em todas essas coisas, somos mais que vencedores pela virtude daquele que nos amou (Rm 8:33-37).

  • À luz daquilo que entendemos até aqui da Palavra de Deus aparece claramente que o pecado fundamental, aliás, a raiz de todo pecado chama-se não amor, a recusa do amor (entende-se deste amor que descobrimos); é recair do mundo de Deus no qual fomos transferidos mediante a fé e o batismo no mundo – ou melhor, no inferno – do eu, da esfera do Espírito à da carne, da novidade à velhice, da liberdade à escravidão.

Tal recaída pode tomar duas formas aparentemente opostas, mas ambas capazes de excluir do Reino de Deus: uma forma, por assim dizer, vulgar e grosseira , em fazer pura e simplesmente o mal, sendo injustos, isto é, impudicos (descarado, exibido, safado, sem-vergonha), adúlteros, depravados e ladrões, avarentos, bêbados, maldizentes (cf 1Co 6:9-10); outra forma, mais sutil e refinada, consiste em fazer o bem mas fazê-lo para a própria glória, para assegurar direitos ou méritos, para aparecer, para erguer-se como juízes dos outros. Uma é “injustiça”, a outra é “falsa justiça”. No Evangelho encontramos continuamente opostas estas duas formas, personificada uma pelos pecadores – os doentes – e outra por aqueles que “se julgam justos” e que por isso não ter necessidade do médico. Em nossa parábola, a primeira posição é a do publicano, a segunda a do fariseu.

Agora, a coisa mais forte que o evangelho nos tem a dizer, a este propósito é a seguinte: entre as duas categorias de pessoas, a mais afastada da salvação não é a primeira, mas a segunda, não é a injustiça, mas a autojustificação: o publicano “voltou para a casa justificado, mais do que o outro”. Esta é a verdade que Jesus martela em todo o evangelho: Não vim chamar os justos, mas os pecadores ao arrependimento; aqui podemos afirmar estar no centro do evangelho.

Compreende-se também, então, a conclusão da parábola que fala da humildade (todo o que se exaltar será humilhado, e quem se humilhar será exaltado): todas as formas de injustiça, com efeito, são pecados de paixão, mas a falsa justiça é pecado de orgulho. O pecador que se reconhece tal, como o publicano, torna-se alguém que tem fome e sede de justiça (Mt 5:6), portanto, aberto a recebê-la; o falso justo está, ao invés, farto pela própria justiça (cf Lc 6:25) e não sente, portanto, a necessidade da justiça que vem de Deus; tem, por assim dizer, o paladar gasto pela própria glória e não possui mais o gosto da glória que vem de Deus (cf Jo 5:44). O primeiro é como um pobrezinho que se encontra ao relento e está pronto a bater se vê uma casa; o segundo está já ao abrigo e não bate em nenhum lugar, mas não se dá conta de que a casa em que se encontra está construída sobre a areia e está para cair.

Torna-se igualmente claro o nexo entre nossa parábola e as afirmações sobre as crianças que se seguem imediatamente ao evangelho de Lucas: Aquele que não receber o Reino de Deus como uma criança, não entrará nele. Como uma criança acolhe, por exemplo, o alimento que lhe é dado, o necessário para ir à escola – uma carícia dos pais? Como a acolhe? Acolhe-a – é verdade – como algo que lhe é devido; desafio qualquer um a provar se quando uma criança quer alguma coisa não a exige! Mas atenção: por qual motivo os pais lhe deveriam algo? Pelo amor dos pais, não por seus méritos, ou porque o ganhou com seu suor; seu grande direito – a natureza mesma lhe ensinou – é ser amada. Digamos claramente entre nós: em algum momento as crianças também especulam sobre esse amor. Pois bem, Deus também nos permite agir assim com ele, desde que o façamos com sinceridade de coração; ele fica contente quando lembramos que nos ama e exigimos este amor: Recorda-te de teu amor por nós que vem da eternidade; recorda-te que és nosso Pai; recorda-te de Abraão, recorda-te de Jesus!

Subiram dois homens ao templo para orar: nós somos aqueles dois homens; um e outro ao mesmo tempo, porque, como o publicano, somos realmente pecadores e, como o fariseu, nos julgamos justos. O que devemos fazer depois de ter ouvido uma parábola como a de hoje? O que se exige de nós para voltarmos para a casa realmente “justificados”, sentindo o olhar de Deus amorosamente pousado sobre nós, assim como se sentia o publicano? É crendo de coração que se obtém a justiça, e é professando com palavras que se chega à salvação (Rm 10:10). Pois bem, nós cremos hoje com todo o coração, e professamos com toda a força que tu, ó Deus, nos ama não obstante sejamos pecadores; que nos justificaste gratuitamente em Jesus Cristo, para dar honra a ele que morreu e ressuscitou por nós. Cremos que se nos deste não nos negará nada daquilo que é necessário para coroar na glória esta aventura maravilhosa da salvação. Cremos que te agradam nossas boas obras feitas para responder ao amor, porque tu colocas em nossas mãos os teus dons como se fossem méritos nossos. Tornamo-nos humildes e pequenos como crianças diante de todo este mistério e te dizemos: Sim, ó Pai, porque foi de teu agrado! Cremos! Cremos! Cremos!