A desafiadora missão profética de seguir os passos de Cristo
UM DIA, JESUS CHAMOU os seus discípulos e estes, deixando tudo, seguiram-no. Passaram a acompanhar o Mestre pelos caminhos da Palestina, percorrendo cidades e aldeias, compartilhando com Ele alegrias, fadigas, fome, cansaço. Houve ocasiões que expuseram a vida e a honra por Jesus.
Mas essa companhia externa foi-se convertendo pouco a pouco num seguimento interno, dando lugar a uma transformação das suas almas. Era um seguimento mais profundo, que requeria algo mais do que o desprendimento ou mesmo o abandono efetivo da casa, do lar, da família, dos bens … Assim o manifestou o Senhor, como lemos no Evangelho segundo Mateus (16:24,25):
Então Jesus disse aos seus discípulos:
— Se alguém quer vir após mim, negue a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Pois quem quiser salvar a sua vida a perderá; e quem perder a vida por minha causa, esse a achará.
Negar-se a si mesmo significa renunciar a ser o centro de si mesmo. O único centro do verdadeiro discípulo só pode ser Cristo, a quem se dirigem constantemente os seus pensamentos, anseios, afazeres cotidianos, que se convertem num genuíno sacrifício de louvor ao Senhor.
Tomar a cruz significa que se está disposto a morrer (cf Gl 2:19,20). Aquele que mortifica o velho homem, a velha natureza pecaminosa, coloca a cruz sobre os seus ombros e aceita plenamente seu destino; sabe que a sua vida terminará nessa cruz – “Não eu vivo, mas Cristo vive em mim …”. Toma uma decisão inabalável de imitar o Senhor até o fim, sem limite algum; propõe-se identificar a sua vontade com a de Cristo, mesmo que isso signifique acompanhá-lo até o Calvário.
Ó Senhor, tu me constrangeste, e eu me deixei constranger.
És mais forte que eu e prevaleceste.
Agora, sou motivo de zombaria todos os dias; todos riem de mim.
Pois, sempre que abro a boca, é para gritar: “Violência e destruição!”.
Essas mensagens do Senhor me transformaram em alvo constante de piadas.
Mas, se digo que nunca mais mencionarei o Senhor, nem falarei em seu nome,
sua palavra arde como fogo em meu coração; é como fogo em meus ossos.
Estou cansado de tentar contê-la; é impossível!
Jeremias 20:7-9
O profeta, num desabafo, faz uma confissão dramática diante de Deus, que o envia a anunciar “violência e opressão”, isto é, um tempo de sofrimento para o povo que não o escuta, mas só quer ouvir os profetas que acariciam e embalam o povo com previsões de paz e segurança. Tanto – dizem eles – temos o Templo de Deus.
Nestas condições, o profeta, que fala realmente em nome de Deus, se torna objeto de ironia, e chacota de todos; faz o papel de um homem desequilibrado, e do profeta das desventuras. Falar em nome de Deus se torna uma tarefa desgastante: “A Palavra de Deus tornou-se para mim opróbrio e ludíbrio todo dia”. Jeremias chega a dizer a si mesmo: “Não me lembrarei mais de Deus, já não falarei em seu nome”. É a tentação da fuga diante das exigências esmagadoras da missão profética, a tentação de não falar mais em nome de Deus, ou de dizer o que o povo gosta de ouvir: palavras que acariciem sua vontade de satisfação a qualquer preço e o embalam numa falsa segurança. Mas o profeta não vai desistir, não pode desertar: Deus o constrangeu em amor. A Palavra de Deus entrou nele e é qual fogo devorador que o profeta não pode abafar. Por isso não vai calar.
“Portanto, irmãos, suplico-lhes que entreguem seu corpo a Deus, por causa de tudo que ele fez por vocês. Que seja um sacrifício vivo e santo, do tipo que Deus considera agradável. Essa é a verdadeira forma de adorá-lo. Não imitem o comportamento e os costumes deste mundo, mas deixem que Deus os transforme por meio de uma mudança em seu modo de pensar, a fim de que experimentem a boa, agradável e perfeita vontade de Deus para vocês.”
Romanos 12:1,2
Vemos na carta do apóstolo Paulo a exortação à igreja em Roma a “oferecer as próprias pessoas em sacrifício, santo e agradável a Deus”. Confirmam as palavras do Evangelho: Se alguém quiser vir comigo, renuncie a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me. Quem quiser conservar a sua vida vai perdê-la … O que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro se depois vier a perder a própria alma?
Nós hoje somos chamados a proclamar aos homens esta palavra tão austera da cruz que faz tremer as veias e os pulsos da nossa pobre natureza humana. Renegar a si mesmos: não é certamente a palavra do Evangelho que as pessoas do nosso tempo preferem ouvir. É mais fácil conquistar ouvintes oferecendo outro evangelho – num ambiente festivo, num lugar que os remete para fora da realidade que enfrentam; Timothy Keller, em seu livro Deuses Falsos, explica como a grande mudança cultural conhecida como iluminismo abandonou a religião ortodoxa e colocou no lugar de Deus coisas como a autossatisfação individual.
Até então, a imaginação, instrumento importante na construção de conhecimento, estava centrada em ícones associados a um caminho de sofrimento e transformação tendo como ápice a paixão e morte de Jesus; hoje prevalece o bem-estar pessoal e conquistas imediatas à base de troca de favores – daí o uso incorreto das Escrituras ao associar personagens bíblicos a atitudes pragmáticas, sem considerar o contexto histórico-cultural e ação profética que revela Cristo. A forma de se oferecer o Evangelho deve ser avaliada; necessário uma liturgia que contemple a humilhação, tentação, angústia, negação, abandono … que levam ao Calvário e revelam nossa miséria e oferecem a graça de Deus.
A graça de Deus se manifesta quando “o próprio Espírito se une ao nosso espírito…” (Rm 8,16). Nesse sentido, podemos pensar que o Espírito Santo age em relação às nossas faculdades naturais (inteligência, memória, vontade, imaginação, consciência…) (Lc 11, 33-36). A fé não substitui a nossa consciência moral, mas vem para purificá-la, inspirá-la, iluminá-la, com a ajuda do Espírito Santo. Assim, o próprio Cristo nos convida a examinar se a qualidade da “luz que há em ti não é treva”(Lc 11, 35).
Este chamado de Cristo para examinarmos a nossa consciência deixa entender que esta pode tanto obscurecer-se como iluminar-se. Do mesmo modo que um vidro pode deixar passar a luz do sol… desde que seja limpo regularmente e que não esteja coberto de lama! O que quer dizer que a faculdade da consciência, em cada pessoa humana, não é somente um puro dado da natureza, de uma vez por todas, mas é um objeto de educação, de inspiração e um caminho de crescimento.
As Sagradas Escrituras não são, por natureza, destinadas a fornecer-nos diretamente os oráculos divinos, nem um código de moral prática com capacidade de considerar todos os casos concretos da nossa vida do século XXI! A nossa consciência pessoal tem a função de encontrar os ajustes necessários, ajudada pelos ensinos da Igreja.
A consciência pessoal deve dar a sua contribuição, porque é uma lei interior que convoca cada um a fazer aquilo que ele crê que é o bem e a evitar tudo o que acredita que é o mal. Convém não confundir os diferentes níveis de consciência: o nível psicológico, o nível moral e o nível espiritual que estrutura toda a pessoa humana. Chegar a distinguir, no fundo de si mesmo, estas três dimensões só pode ser fruto de um paciente caminho de discernimento interior. A consciência moral é um dom de Deus feito a cada homem. Faz parte da estrutura da sua humanidade e inscreve-se no fundo do coração de cada um como uma lei, que convida a amar e a escolher o bem e a recusar o mal. Não pode bastar-se a si mesma e deve ser iluminada pela Palavra de Deus, as doutrinas e liderança pastoral.
A nossa tentação – digo, nossa, isto é, de nós anunciadores do Evangelho – é a mesma de Jeremias e de Jonas; fugir da ingrata missão, aparentemente inútil, de anunciar aos homens de nosso tempo as palavras que eles não gostam e não querem ouvir. E não somente aos homens que estão diante de nós – aos ouvintes – mas também ao homem que está dentro de nós porque também nós que devemos pregar a cruz pertencemos àquela mesma geração que não quer ouvir falar em cruz.
E, todavia, não podemos calar. O povo cristão teria motivo de se envergonhar dos seus sacerdotes no dia em que eles deixassem de falar com coragem e dizer como Paulo: O que nós anunciamos é Cristo e Cristo crucificado
(1Co 1,23).
Contudo, hoje, nosso dever não é só anunciar a cruz, mas também o de fazer compreender o significado daquele anúncio, isto é, o sentido que ela tem para nós (cosmovisão cristã), para nossa experiência humana e para nosso destino.
Jesus nos diz que precisamos negar a nós mesmos, aprender a perder até a própria vida. Em certo sentido, portanto, a alienar-nos de nós mesmos. No entanto nós vivemos numa civilização que recusa e combate a alienação de si mesmo e que propõe, ao invés, como valor supremo da pessoa, a própria realização. O trabalho, o tempo livre, a cultura de entretenimento, toda promoção e emancipação social, tudo é visto em função de uma autorrealização do homem. O homem quer vencer, não perder, tanto menos perder a sua vida.
O que pensar então? Será que devemos realmente cair fora da corrente do mundo e renegar-nos como homens para sermos cristãos? Não, porque a renúncia que Jesus exige é, na realidade, a mais alta autorrealização, é a nossa verdadeira recuperação: porque perder a nós mesmos é o modo melhor para nos reencontrar – porque quem perde a sua vida vai encontrá-la.
O que podemos esperar de obter com uma autorrealização no plano humano? Talvez fazer de nós pessoas cultas, respeitadas, ricas, plenamente autônomas, que chegam com boa saúde até uma idade avançada? Mas que vantagens traz tudo isso no fim? “O que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro se depois perde a própria vida? De que adiantam fama, dinheiro, divertimentos, se a morte engole tudo isso? Santo Agostinho diz: “O que adianta viver bem se não se vive para sempre.”
Jesus nos oferece a possibilidade e a esperança de romper esse muro que se levanta em nossa frente. Nos oferece exatamente um caminho inverso: o da renúncia. Mas fiquemos bem atentos: renunciar a que? Não às nossas autênticas possibilidades e aos valores humanos, mas à parte doentia de nós mesmos, o inimigo de Deus e nosso, inimigo que mora em nossa carne; o homem velho, como chama a Bíblia: o homem egoísta, dominado pela ganância e por apetites desordenados (concupiscência), que não é mais capaz de amar ninguém a não ser a si mesmo e ainda de modo equivocado. Neste sentido Paulo nos diz: Pois os que são de Jesus Cristo crucificaram a carne, com as paixões e concupiscências (Gl 5,24) – crucificaram a velha natureza para fazer surgir a nova, o homem velho para fazer renascer o homem novo, criado à imagem de Deus, vocacionado para a vida eterna: o homem que é, finalmente, livre de fato. Na verdade, isto não é alienar-se, mas sair de um estado crônico de alienação.
Demos mais um passo à frente: renúncia por quem e por qual motivo? Por causa de mim, por amor a Deus; por causa, portanto, de uma escolha, a vontade de Deus em lugar do nosso ego – por causa da esperança que Deus nos oferece além da morte; “O Filho do Homem virá na glória do Pai e então dará a cada um prêmio de sua conduta”.
Esse caminho estreito que o Evangelho nos traça tem, portanto, Deus como sua meta, como prêmio (“Eu mesmo serei tua recompensa”, nos diz o Senhor, como a Abraão (cf Gn 15,1). Mas tem Deus também em seu início. Jesus, com efeito, inaugurou e percorreu pessoalmente este caminho e por isso “tomar a cruz” significa agora “ir após ele”, colocar os pés em suas pegadas, segui-lo. Há uma sugestão límpida e transparente de significado no evangelho que meditamos: Jesus fala da cruz dos discípulos, depois de ter falado da sua: O filho do homem irá para Jerusalém, e lá vai sofrer, será morto […] Mas ao terceiro dia ressuscitará.
É este evento de morte e ressurreição do Salvador a fonte e o modelo do nosso perder-nos para reencontrar-nos, do nosso morrer para viver. Este evento se repete agora diante de nossos olhos na Eucaristia – procuremos haurir nesse acontecimento ímpar a coragem para segui-Lo e o propósito de oferecer de verdade nossas pessoas como sacrifício vivo a Deus.