Se eu anunciar que alguns perversos certamente morrerão e você não lhes disser que mudem sua conduta, eles morrerão em seus pecados, mas considerarei você responsável pela morte deles. Ezequiel 33,8

O texto de Ezequiel em seu contexto, aponta claramente para as obrigações daqueles que têm por missão denunciar o mal e não o fazem, seja por medo, covardia ou qualquer outra razão. E diz claramente ao Profeta: «ouça o que eu digo e advirta-os em meu nome». Se não avisarmos, nos pedirá contas; se os avisarmos, terá a tua vida salva. Nota-se, nestas palavras, que a denúncia dos erros e do pecado faz parte da profecia que, sendo essencialmente anúncio, é também denúncia do que se opõe à mensagem de Deus. Vale a pena, a esta luz, interiorizar o que nos diz o texto do Evangelho segundo Mateus 18,15: “Se um irmão pecar contra você, fale com ele em particular e chame-lhe a atenção para o erro. Se ele o ouvir, você terá recuperado seu irmão.” 

A correção, quando é evangélica, é talvez a manifestação mais genuína do amor fraterno. Ela exclui qualquer desejo de vingança ou ostentação pessoal e é movida unicamente pelo desejo do bem do outro.

Para compreender esse ensinamento, temos de ter bem clara a sua finalidade. O que Jesus está querendo alcançar? Para alguns, o Senhor propõe simplesmente uma forma de resolver problemas de relacionamento, seja com familiares, amigos ou com a comunidade cristã.

Mas ler assim o Evangelho é não o entender em sua plenitude. Por quê? Porque Jesus está nos dando um caminho para ajudarmos nossos irmãos cristãos a alcançar a salvação e serem aperfeiçoados no caráter de Cristo. Isso mesmo! Estamos falando não da correção em si, mas de um meio para alcançar a salvação e santificação: “Se ele te ouvir, você ganhou o teu irmão”. Aqui está o cerne da questão: salvar o irmão. 

O que existe de mais natural do que perceber as culpas dos outros? Ao invés, se trata de uma das coisas mais difíceis e isto explica por que seja tão rara nos relacionamentos humanos a verdadeira correção fraterna. Jesus não ensina a caça aos defeitos alheios, a maledicência ou aquela propensão tão frequente de tornar públicos os defeitos do próximo, embora fingindo estar talvez hipocritamente tristes pelo mal que produzem contra a virtude.

Pois bem, Santo Tomás de Aquino, ao meditar sobre essa passagem, chama a atenção primeiramente para isso. Muitas vezes, a pessoa quer corrigir o irmão, mas simplesmente por ter sido ofendido ou para mostrar que tem razão. Sua causa talvez até seja justa. Um irmão seu lhe devia dinheiro e não lhe restitui; portanto, ele está devendo. A pessoa saiu prejudicada, por isso o procura para fazer a cobrança. Ele se faz de desentendido. Sua reação? Proclama aos quatro ventos: “Esse cara aqui é um mau pagador!” Depois faz um protesto em cartório e põe o nome dele no SPC. Numa palavra, a pessoa acabou com a fama do irmão, mas, aparentemente, observou o processo direitinho, seguiu o manual e está resolvido o seu problema… 

Porém, não é isso o que Jesus está nos ensinando. Nosso Senhor quer mostrar como devemos pescar o irmão para Deus, para salvar a alma dele. Santo Tomás nos diz que se a pessoa fizer tudo isso por uma razão carnal, simplesmente para o seu próprio benefício, nada será virtuoso e meritório.

O que Jesus está nos ensinando no Evangelho é como proceder. Você precisa entender: nós somos pescadores de homens; se você quer apenas ter razão, tudo bem… Você até pode estar coberto de razão, e o seu irmão vai para o inferno; mas se você quer salvar o seu irmão, a coisa muda de perspectiva. Você passa a entender de outra maneira os procedimentos e os conselhos que Jesus está nos dando. “Teu irmão pecou contra ti”. O mais importante não é o “contra ti”; o mais importante é: “O teu irmão pecou”. Portanto, que devemos fazer para o tirar do pecado? 

Agora é preciso enxergar a situação com o olhar de Deus. Você precisa ver as coisas a partir daquilo que Deus vê. É claro, provavelmente você está coberto de razão; é claro, o seu irmão foi desonesto; mas como iremos salvá-lo? Jesus nos dá o caminho. A primeiríssima coisa a fazer é salvar o irmão, ou seja, tentar salvá-lo privadamente.

Por quê? Lembre que Jesus está falando a respeito de um irmão, ou seja, de um membro da Igreja, alguém que supostamente tem a mesma fé, que sabe o que é o certo e o que é o errado, que já entrou no caminho da salvação; mas infelizmente tropeçou, ofendeu a Deus e quem sabe até ofendeu você. A prioridade é tirar esse irmão do pecado. Afinal, ele é seu irmão. 

Para tirar o irmão do pecado — para salvá-lo —, precisamos querer salvá-lo por inteiro. Ele é membro da Igreja, o Corpo de Cristo. Ora, você não pode começar a salvar o irmão jogando a fama dele na lata do lixo. Essa não é a primeira atitude. Santo Tomás nos diz que devemos salvar o irmão por inteiro, e uma das coisas necessárias é salvar a imagem dele. Por quê? Porque a fama — ou seja, a boa reputação — é essencial para a vida. Ninguém vive sem amigos. Destruir a dignidade de uma pessoa diante de todos os seus amigos é uma coisa bastante séria.

Isso porque a pessoa, uma vez arrependida, terá de voltar ao convívio com os outros. Mas como é difícil voltar ao convívio, quando a sua imagem está manchada. Eu até posso perdoar a uma pessoa, mas isso não quer dizer que todo o mundo perdoou. Eu até posso esquecer uma ofensa, mas isso não quer dizer que todo o mundo esqueceu.

Veja como é difícil quando, ao invés de corrigirmos o irmão privadamente, acabamos comprometendo a boa fama dele, o que se torna mais uma pedra de tropeço em seu caminho de salvação. Ora, Deus quer que sejamos salvos. Para isso, Ele nos dá irmãos, a comunidade dos cristãos; e para viver em comunidade, precisamos ser bem quistos, convivendo pacificamente uns com os outros.

Isso é o essencial do que Jesus está tentando nos dizer. Precisamos ser pescadores de homens e salvar as almas; logo, o principal não é a desforra nem ter razão, mostrar coragem ou dar uma lição de moral ao malfeitor. O principal é colocar o irmão debaixo da luz misericordiosa de Deus e perguntar-se: “Como Deus vê essa pessoa? Como Deus olha para essa alma? Deus quer salvá-lo. Como eu posso ser instrumento de salvação?” Santo Tomás diz: “Corrige o teu irmão privadamente”. É importante entender que é um dever corrigir.

Como meditamos através profeta Ezequiel, “se não advertir o ímpio, eu te pedirei contas da sua morte”. Ou seja: nós precisamos entender que temos a obrigação de corrigir os outros, mas também precisa ficar claro que temos essa obrigação quando a correção for, de fato, ocasião para que a pessoa se converta e se salve.

A correção fraterna, franca, respeitosa, sugerida pelo Evangelho, se praticada constantemente e oportunamente nos relacionamentos com quem temos aliança, poderia interromper na raiz aqueles perigosos caminhos de ressentimentos, de friezas e de vinganças que muitas vezes acabam levantando muros de separação, tornando estéreis os melhores relacionamentos. Serviria para manter vivos o diálogo, a confiança e o amor recíproco. Dá disposição e força, com efeito, sermos considerados capazes de aceitar uma observação; tornamo-nos melhores e mais maduros juntos, seja por parte de quem a pratica como de quem a recebe. Realiza-se o que diz a Bíblia: As palavras sábias saciam como uma boa refeição; as palavras certas dão satisfação (cf Pv 18,20). Muitas vezes depois de uma experiência desse tipo o relacionamento entre duas pessoas se torna límpido como um céu depois de uma chuva e nos sentimos muito mais amigos do que antes.

Até aqui no âmbito individual. O Evangelho prossegue dizendo que se a primeira tentativa neste domínio não surte efeito deve a comunidade local se encarregar disso. E aqui a correção se torna pública. A igreja como tal é investida por Cristo do poder de corrigir o indivíduo, chegando até a separação dos obstinados de seu meio: “Considere-os como pagão”.

Essa afirmação se amplia, depois, até chegar àquela declaração de alcance imenso dirigida aos apóstolos: o que vocês ligarem na terra terá sido ligado no céu, e o que desligarem na terra terá sido desligado no céu (Mateus 18,18). Jesus tinha afirmado que com a vinda do Espírito Santo teria convencido o mundo do pecado (cf Jo 16,8); aqui parece que a mesma função seja atribuída à Igreja. Se mediante a Igreja, enquanto proclama a Palavra de Deus, que o Espírito convencerá o mundo do pecado e é mediante a Igreja que desligará ou ligará (cf Jo 20,23). É à Igreja, por isso, que se aplica nessa meditação a Palavra de Deus, dita ao profeta Ezequiel: “Agora, filho do homem, eu o coloquei como vigia do povo de Israel. Portanto, ouça o que eu digo e advirta-os em meu nome” (33,7)

Vigia, sentinela sobre o mundo! É uma missão quase sobre-humana. “Se, contudo, o vigia vê o inimigo, mas não dá o sinal de alarme para advertir o povo, ele é responsável. Eles morrerão em seus pecados, mas considerarei o vigia responsável pela morte deles” (cf Ez 33,6). A Igreja não pode, por isso, calar, também se muitos gostariam que calasse. A denúncia das desordens, dos pecados, seja na vida social ou na individual, faz parte de seus deveres e nenhuma intimidação pode impedir o exercício desse dever. Um vigia (sentinela) mudo não serviria a Deus nem aos homens.

A verdadeira dificuldade é antes outra. Como fazer para saber quando a Igreja está de verdade sendo sentinela de Deus – isto é, procurando sua vontade e seu juízo sobre o mundo – e quando, ao contrário, talvez sem perceber, é sentinela somente de si mesma, isto é, do passado ou da ordem constituída? Comumente se diz: quando a igreja se pronuncia sobre a fé e os costumes não quando o faz sobre coisas contingentes como aquelas da política. Isto pode ser verdadeiro, mas nem sempre ajuda a decidir em casos concretos, porque também a política pode configurar-se às vezes como escolha moral (aborto por exemplo). Continua válido que todo cristão deve ser esforçar para ser ele mesmo sentinela, isto é, em atitude de escuta da Palavra de Deus, para que o testemunho interior do Espírito o ajude a discernir o testemunho da autoridade (cf At 5,32) e, se esta o requer, a ser dócil e obediente até a impopularidade, ou também, se necessário, até enfrentar com coragem a oposição da autoridade.

A catástrofe diluviana que resultou na intervenção divina revela o cuidado de Deus para com a sua obra e as criaturas. O recomeço com Noé aponta para a história de salvação preparada desde a fundação do mundo e anunciada após o pecado do ser humano no Éden (Gn 3.15). A restauração passa a ser um princípio bíblico fundamental diante da constante desobediência e afastamento humano. A misericórdia divina se manifesta dia a dia como bálsamo que cura as feridas do coração humano arrependido e que deseja a reconciliação com o Criador. O apelo profético reflete a vontade  divina no decorrer dos séculos: “Buscai o Senhor enquanto se pode achar, invocai-o enquanto está perto. Deixe o perverso o seu caminho, o iníquo os seus pensamentos; converta-se ao Senhor que se compadecerá dele e volte-se para o nosso Deus porque é rico em perdoar” (Is 55.6-7). 

Jesus Cristo se referiu a Noé como um acontecimento indiscutível, alertando seus seguidores a respeito do fim do mundo e da aplicação da justiça divina. As palavras de Cristo se tornaram um brado de advertência e, ao mesmo tempo, a certeza de que os acontecimentos foram reais, servindo de exemplo para os desobedientes e rebeldes: “Pois assim como foi nos dias de Noé, também  será a vinda do Filho do Homem. Porquanto, assim como nos dias anteriores ao dilúvio comiam e bebiam, casam e davam-se em casamento, até ao dia em que Noé entrou na arca, e não o perceberam, senão quando veio o dilúvio e os levou a todos, assim também será a vinda do Filho do Homem”  (Mt 24.37-39).

Na história bíblica encontramos a experiência do povo israelita, que padeceu com os reis que não foram obedientes às promessas de fidelidade ao Deus Criador. Inúmeras apostasias foram cometidas em busca de igualdade de poder e independência, à semelhança dos povos pagãos. Difícil imaginar que um povo que tem alternância de sistema de governo, e depende do ímpeto e ideias de seu rei (governante), conseguirá se estruturar como nação para defender seus ideais nacionais. A estabilidade precisa estar alicerçada na moral nacional que defende princípios básicos e tem planejamento estratégico, porque sabe onde chegar e o que deseja conquistar.

Parece-nos que o cerne do problema estava mais no líder do que no sistema do governo, pois assim entenderam Samuel e o próprio Deus. O pedido de um rei não agrediu tanto quanto a manifestação de rejeição da liderança divina: “queremos ser igual aos outros povos” (1 Sm 8), os quais eram pagãos, idólatras e insubordinados. Depois de tantos anos, os anciãos israelitas viam na forma teocrática de governo vantagens e desvantagens na subordinação às leis divinas, porque elas eram inegociáveis e permanentes. Percebiam que os outros povos mudavam de líder e de leis a qualquer momento conveniente, sem compromisso religioso ou peso de consciência. Deus exigia em suas leis um compromisso com fidelidade em todas as gerações, acenando com bênçãos e advertindo com maldições para os desobedientes (Dt 28.1-68).

A teocracia bíblica estabelece limites entre a soberania divina e a liberdade  humana, a partir da criação do mundo. Não significa apenas uma soberania espiritual, como muitos assim interpretam, mas um domínio total e absoluto do Deus Criador. Não há condições em que o ser humano possa discutir o poder ou tentar se igualar ao Senhor, porque à criatura cabe reconhecer e obedecer ao seu Criador. Este é o ponto nevrálgico de toda a questão apresentada a Samuel e que continua por séculos e séculos no exercício dos sistemas de governo.

Como lição histórica, aprendemos que a forma de governo não protege um povo e nem dá garantias de estabilidade e êxito. Em qualquer forma de governo, as responsabilidades continuam tanto dos líderes como dos liderados. O povo israelita entendeu que os reis bons e maus estavam debaixo da soberania divina e ao Senhor prestariam contas por seus atos, não somente políticos, mas também religiosos e pessoais.

O apóstolo Paulo nos indicou um caminho, talvez o único possível, para superar todo eventual conflito entre obediência e resistência. “Não devam nada a ninguém, a não ser o amor de uns pelos outros. Quem ama seu próximo cumpre os requisitos da lei de Deus” (Romanos (13,8). Isto vale também para correção individual entre irmãos … Santo Agostinho aplicou exatamente à correção fraterna as palavras de São Paulo sobre a compaixão: “Ama e faça o que queres. Seja que cales, cala por amor, seja que fales, fala por amor; seja que corrijas, corrige por amor; seja que perdoes, perdoa por amor. Esteja em ti a raiz do amor, porque desta raiz não pode nascer outra coisa a não ser o bem” (Tract, in Job, 7,8).