O imperativo da hora: fortificar-se no essencial
“Nenhum servo pode servir a dois senhores” Lucas 16:13
Depois do retorno de Jesus à Galileia, uma vez terminada a sua atividade em Jerusalém, percebe-se uma diferença em sua maneira de falar e na orientação espiritual que propõe a seus discípulos. Antes, no início de suas atividades, semeava abundantemente palavras, obras e milagres no terreno alegremente receptivo que o acolhera. Agora, a direção se volta para o interior. Ele ensina seus ouvintes a compreender o que é verdadeiramente importante, fortifica-os no essencial e os prepara para enfrentar a provação. Isso fica bem claro em alguns trechos do capítulo 15 de Mateus e nos capítulos 12 a 16 de Lucas.
Jesus falou sobre os fariseus e os chamou de hipócritas. Depois foi embora; mas os discípulos, que permaneceram ainda junto à multidão, perceberam a repercussão das palavras de Jesus sobre os fariseus, e ficam preocupados (cf Mt 15: 12-14):
Então, aproximando-se dele os discípulos, disseram:
— Sabia que os fariseus, ouvindo o que o senhor disse, ficaram escandalizados?
Mas ele respondeu:
— Toda planta que meu Pai celeste não plantou será arrancada. Esqueçam os fariseus; são cegos, guias de cegos. Ora, se um cego guiar outro cego, ambos cairão num buraco.
De início, os discípulos têm simplesmente medo, pois os fariseus são poderosos. Mas por trás desse medo há algo mais profundo. Os fariseus e doutores da Lei, sacerdotes e membros do Sinédrio encarnam a tradição da Lei. A sua oposição a Jesus provoca nos discípulos um grave conflito. Eles estão unidos ao seu Mestre, mas não podem deixar de respeitar igualmente os doutores e os chefes de seu povo. Por isso é compreensível que perguntem se estará mesmo tudo em ordem com Jesus de Nazaré. É aqui que intervém a palavra do Senhor: Não há nenhuma autoridade fora de Deus. Ele confiou a seu Filho a plenitude da sua missão; por isso, Jesus é a autoridade por excelência. Os que detêm o poder são chamados a reconhecê-lo e a conduzir o povo até ele. Não o quiseram fazer, e por isso são agora guardiões de “uma plantação que não foi feita por Deus”. Quem se puser ao lado deles, irão se enfraquecer. São guias cegos, que não veem eles mesmos o caminho; e quem confiar neles irá perder-se. Com isso, Jesus prepara o campo para o combate. Prescinde das autoridades antigas, que conservam um poder exterior, mas sem nenhuma validade interior.
— Quem é fiel no pouco também é fiel no muito; e quem é injusto no pouco também é injusto no muito.
Lucas 16:10
A parábola do administrador desonesto é uma das mais difíceis de se entender em todo o evangelho. O motivo desta obscuridade não é que Jesus desta vez não tenha sido claro, mas é que ao significado originário entendido por Jesus foram sobrepostos outros, nascidos do uso que se fez da parábola na Igreja primitiva. Notou-se que o texto de Lucas a parábola, é seguida por pelo menos três aplicações diferentes:
Primeira aplicação: os filhos deste mundo se comportam, com seus bens, com mais esperteza do que os filhos da luz.
Segunda aplicação: consiga amigos com as riquezas injustas.
Terceira aplicação: se você não for fiel nas riquezas materiais, quem te confiará as verdadeiras?
Isso não deve nos surpreender – os evangelhos nasceram assim; são as palavras e os fatos de Jesus reinterpretados pela Igreja à luz do Espírito Santo que vinha revelando, naquelas palavras e naqueles fatos, significados sempre mais ricos, capazes de iluminar as situações novas nas quais a Igreja veio a se encontrar depois da Páscoa, novas e diferentes em relação à que Jesus ensinara. O importante para nós que estes significados novos não são acréscimos “humanos” à Palavra divina, mas provêm da mesma fonte. O mesmo Espírito que falava e operava em Jesus de Nazaré agora fala e opera na Igreja, iluminando as Escrituras.
Gostaríamos que a leitura que agora fazemos da parábola do administrador desonesto partisse do significado original que Jesus quis dar, na primeira vez que a pronunciou, para depois abraçar também as aplicações que fez a Igreja apostólica.
A interpretação de Jesus resume-se nestas palavras: o proprietário (ou talvez melhor o Senhor) admirou a astúcia do administrador, porque os filhos deste mundo são mais prudentes do que os filhos da luz. O administrador não é elogiado absolutamente pelo seu procedimento diante de Deus, mas porque agiu bem relativamente ao modo de agir entre eles, os filhos deste mundo; aplicou magistralmente a sabedoria desse mundo, ficando claro, porém, que para Jesus a sabedoria deste mundo é tolice aos olhos de Deus (reler a parábola do rico estulto!). A esperteza deste homem consiste em que, ao surgir uma situação emergencial (de ser demitido), não se deixou levar pelo acaso, não esperou o irreparável, ficando de braços cruzados; parou para refletir, fez desfilar diante de si rapidamente as possíveis soluções – capinar? mendigar? – e, apenas vislumbrada aquela “justa” a levou a efeito com determinação.
Jesus dizia estas coisas a ouvintes que talvez tinham o objetivo de se encontrar com ele diante de uma hora grave da história, um encontro decisivo com a vontade de Deus, mas não sabiam se decidir; preferiam manter uma posição ambígua ou – como diz Jesus – servir a dois senhores. A estes Jesus diz: por que sois tão hábeis e calculistas para enfrentar as situações dramáticas que se apresentam no plano temporal dos negócios, dos afetos, da saúde, e sois tão displicentes diante das coisas absolutamente decisivas como o Reino de Deus, isto é, a vossa salvação? Como se dissesse: Ao armar-se no mar uma tempestade ameaçadora, um bom marinheiro não fica aí querendo salvar a todo custo a carga e as pessoas; faz uma escolha, joga tudo ao mar contanto que se salvem as pessoas. Por que não vos decidis a fazer a mesma coisa na iminência deste outro naufrágio?
Na parábola ressoa, portanto, aquilo que se chama “o imperativo da hora”, a advertência escatológica, que é a nota mais aguda e insistente de toda a pregação terrena de Jesus: é necessário decidir-se, o Reino está próximo; o Esposo está para vir! Os incertos ficarão fora batendo desesperadamente, como as virgens que ficaram dormindo. Eles também dirão: Senhor, abre-nos, ele responderá: Digo-vos que não sei donde sois (Lc 13,25). Tarde demais!
Como não perceber também nós o imperativo da hora? As pessoas a quem Jesus dirigia aquelas graves palavras era gente que podia afirmar ter comido e bebido com ele e tê-lo ouvido pregar nas próprias praças (cf Lc 13,26). Não somos aquelas pessoas e agora sabemos que isto não basta para salvar-se; é necessário algo mais; é preciso se decidir realmente por Jesus: ou com ele ou contra ele. Não se pode pensar que seja suficiente, para se salvar, reservar a Deus algum pensamento aqui e ali; algum retalho de tempo, mantendo-o, porém, desligado de todo o resto da própria vida. A desproporção entre a energia, a sagacidade, a decisão que se toma nas coisas temporais em relação àquela que se tomam nas coisas de Deus salta aos olhos em cada momento; no plano temporal, basta um sintoma de uma doença para suscitar um alarme, uma corrida aos médicos e remédios; no plano espiritual, deixa-se que certas doenças se desenvolvam tranquilamente sem nenhuma apreensão, sem recorrer a nenhum médico. Quantas vezes acontece, também entre os cristãos, de não se chamar um sacerdote à cabeceira da cama de um moribundo e nem avisa a este sobre a gravidade, por medo de assustá-lo. Como se, estando alguém para cair num precipício que não vê, não se lhe dissesse nada para não o impressionar!
Este é o fato resumido por Jesus na parábola do administrador infiel. Este fato – dizia – foi meditado pela Igreja primitiva, que chega a tirar alguma consequência prática. No tempo de Jesus, “decidir-se” significava “crer no Evangelho”, tornar-se seu discípulo, colocar-se ao seu lado; agora, para aqueles que já abraçaram a fé e vivem na Igreja, o que significa decidir-se? Refletindo no desenvolvimento da parábola vinha espontânea uma resposta: fazer amigos com a riqueza desonesta! Um modo concreto e eficaz de concretizar uma escolha de fé por Jesus e pelo Reino é mudar de atitude para com a riqueza terrena: não considerá-la mais como algo a ser possuído, mas como algo a ser administrado, não como algo que se faça crescer pelo gosto de amontoar, mas como algo a ser transformado em alegria também para os outros. Os pobres são os amigos naturais de Deus (“levanta da poeira o indigente e do lixo ele retira o pobrezinho” Sl 113:7); por que não se tornar amigo destes poderosos amigos de Deus? Um dia, ou melhor já agora, eles podem possibilitar que entre no Reino dos céus que é “deles” (cf Mt 5:3). Mas não se trata tanto de esmola e de doações quanto, antes, de reta administração e, muitas vezes, até de restituição: “O pão que vos sobrais é o pão do faminto; a roupa pendurada no vosso armário é a roupa daquele que está nu; os sapatos que vós não usais são os sapatos de quem está descalço; o dinheiro que segurais escondido é o dinheiro do pobre; as obras de caridade que vós não fazeis são outras injustiças que vós cometeis” (São Basílio de Cesareia – séc.IV).
A reflexão propondo-nos hoje a parábola do administrador desonesto, tem por objetivo orientar, também ela, a atenção sobre este problema da atitude para com os pobres. Revela isto também o profeta Amós (8:4-7); é uma formidável denúncia do modo como muitas vezes nos enriquecemos sugando o sangue dos pobres. Amós faz ver como é verdadeira a parábola de Jesus que fala da “riqueza desonesta”. O profeta lembra truques conhecidos desde que o mundo é mundo, com os quais “se maltrata humildes e se causa a prostração dos pobres da terra” (cf Am 8,4): balanças falsas, vendas proteladas, aumento dos preços, monopólio, usura. Pode-se dizer que a Palavra de Deus queira advertir hoje energicamente, sobretudo, uma categoria de pessoas; as que trabalham na indústria, no comércio ou na política; isto é, naqueles setores onde isto acontece com ainda mais facilidade e em proporções às vezes gigantescas. Mas também entre estes a Palavra de Deus faz uma distinção; esta tem em mira, sobretudo, aquelas pessoas que se obstinam em servir a dois senhores: Deus e o lucro (entenda-se ganho desonesto ou desproporcionado); gente que quer parecer piedosa e praticante de princípios morais (Amós fala dos ricos que respeitam o novilúnio (Lua nova)) e o sábado, sem porém afastar-se minimamente do modo de agir daqueles seus companheiros ou concorrentes; são “os filhos da luz” que querem ser igualmente bons como “filhos deste século”.
Enquanto Igreja, para ser bom administrador dos talentos que recebeu dos bens que se deve prestar contas, o cristão deve saber ainda, como manifestação e contraprova do seu amor a Deus, dirigir as suas ações para a promoção do bem comum, encontrando para isso as soluções adequadas, com engenho, com “profissionalismo”, levando adiante ou colaborando em empreendimentos ou obras boas a serviço dos outros, tendo a convicção de que valem mais a pena que o negócio mais atraente. São os membros da igreja que devem intervir nas grandes questões que afetam a presença direta da Igreja no mundo tais como a educação, a defesa da vida e do meio ambiente, o pleno exercício da liberdade religiosa, a presença da mensagem cristã nos meios de comunicação social. Nestas questões, devem ser os próprios cristãos enquanto cidadãos e através dos canais a que tem legítimo acesso no desenvolvimento da vida pública, quem faça ouvir a sua voz e prevalecer os seus justos direitos. Assim, serviremos a Deus no mundo.
Mobilizando todos os meios ao nosso alcance, temos de trabalhar, com entusiasmo e energia renovados por refazer o que foi destruído por uma cultura materialista e hedonista, e por avivar o que existe apenas debilmente. Não se trata já de revigorar as raízes. Em não poucos casos, em não poucos ambientes, trata-se de começar desde o princípio, quase a partir do zero. Por isso é possível falar hoje de um tempo de avivamento. A tarefa que o Senhor nos confia é imensa. Não deixemos de empenhar nela o nosso tempo, o prestígio profissional, a ajuda material …
Ainda que seja a graça que transforma os corações, o Senhor quer que utilizemos meios humanos na nossa ação apostólica, todos os que estiverem ao nosso alcance. São Tomás de Aquino ensina que seria tentar a Deus não fazer aquilo que podemos e esperar tudo dEle. Este princípio também se aplica a atividade apostólica, em que o Senhor espera dos seus discípulos uma cooperação sábia, efetiva e abnegada. Não somos instrumentos inertes. Os filhos da luz devem ser tão hábeis como os filhos deste mundo, e acrescentar aos meios sobrenaturais os talentos humanos, os dons de simpatia e comunicabilidade, a arte da persuasão, a fim de conquistarem uma alma para Cristo.
Sabemos muito bem que a missão apostólica a que o Senhor nos chama ultrapassa a capacidade dos meios humanos ao nosso dispor, e por isso nunca deixaremos de lado os sobrenaturais, como se fossem secundários. Não poremos a nossa confiança na sagacidade pessoal, no poder de persuasão da nossa palavra, nos bens que são o suporte material de um empreendimento apostólico, mas na graça divina que fará milagres com esses meios. Esta confiança no poder divino nos levará, entre outras coisas, a não esperar ter à mão todos os meios necessários (talvez nunca cheguemos a tê-los) para começar a agir, e menos ainda a desistir de continuar certos trabalhos ou de começar outros novos. – começa-se como se pode. E pediremos a Jesus o que nos falta e atuaremos com a liberdade e ousadia que nos dá a absoluta confiança em Deus.
Concluindo, lembremos o imperativo da hora; aquela hora proclamada por Jesus é sempre atual; é “esta” hora. Também o imperativo de Jesus, portanto, é atual: convertei-vos, escolhei a quem quereis servir como único senhor da vossa vida; não vos iludais de que tenhais todo tempo. Eis, eu estou à porta e bato … Agora é o tempo propício, agora o tempo da salvação. Eu me torno agora teu alimento e tua bebida para que tu creias que te amo e não tenhas mais medo de escolher-me e te abandonar totalmente a mim.