Jesus modifica o conceito de poder substituindo-o pelo de serviço
E Jesus lhes perguntou: — De quem é esta figura e esta inscrição? Eles responderam: — De César. Então Jesus lhes disse: — Deem, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Ouvindo isto, se admiraram e, deixando-o, foram embora. Mateus 22,20-22
O evangelho que propomos nos convida a nos ocupar de um aspecto da vida cristã que fica, geralmente, às margens de nossa atenção durante os encontros dominicais: a situação política. Todos nós estamos convencidos de que o Evangelho não afasta o cristão da política, mas antes quer que o cristão participe com especial responsabilidade e testemunho da construção do bem comum. O difícil é como fundamentar no Evangelho este compromisso, isto é, como uni-lo ao compromisso religioso a fim de que não se perpetue aquela separação nefasta entre fé e práxis, entre o tributo que devemos dar a Deus e o tributo que devemos dar a César.
A Palavra de Jesus de hoje nos ajuda a encontrar este fundamento evangélico. Ele afirma antes de tudo que o Reino de Deus e o de César não se excluem, como pensavam os judeus; é possível ao discípulo de Jesus, ao mesmo tempo, agir em ambos os campos sem conflitos insanáveis. Em segundo lugar, nos abre o caminho para observar qual foi a ação concreta de Jesus para com a realidade política de seu tempo. Duas premissas, essas, que nos permitem, no fim, tratar a linha de conduta para o cristão na história e na vida.
Os fariseus, com a intenção de apanhá-lo em contradição, mandam a Jesus uma comissão-arapuca formada de fariseus e herodianos, isto é, da facção nacionalista e da filorromana. Se responder “sim”, que se deve pagar o imposto a César, será acusado pelos fariseus de colaborar com Roma; se disser “não” passará por subversivo diante dos herodianos. Mas Jesus desmonta a arapuca, dizendo duas vezes “sim”. Com tal resposta ele corta o nó górdio (grande dificuldade) e coloca o problema em nível infinitamente mais profundo. Trata-se de uma das palavras de Jesus que provocam o homem a dar um enorme passo à frente esclarecendo-o num ponto essencial. É o início da separação entre religião e política, entre Igreja e Estado, desconhecida para os homens, antes dele.
Os hebreus estavam acostumados a imaginar o Reino de Deus, a ser implantado pelo futuro Messias, de uma forma teocrática, isto é, como domínio direto de Deus sobre toda a terra. Agora, ao contrário, a Palavra de Jesus revela a existência de um Reino de Deus na história, no qual é possível a cada um (não só ao judeu) entrar desde já, sem esperar que se instaure um hipotético Reino político universal de Javé sobre a terra. A decisão é possível no interior de um reino pagão tão bem quanto no seio de uma teocracia, e isto porque não se identifica nem com um nem com outro. Revelam-se, desse modo, dois tipos qualitativamente diferentes de dominação, ou soberania, de Deus no mundo. A soberania espiritual que constitui o Reino de Deus, que ele exerce diretamente em Cristo, e a soberania temporal ou política, que Deus exerce indiretamente, confiada como é à livre responsabilidade do homem.
“Assim diz o Senhor ao seu ungido, a Ciro, a quem tomo pela mão direita, para submeter as nações diante dele, para desarmar os reis, e para abrir diante dele os portões, que não se fecharão: … Por amor do meu servo Jacó e de Israel, meu escolhido, eu o chamei pelo seu nome e lhe dei um título de honra, mesmo que você não me conheça.” “Eu sou o Senhor, e não há outro; além de mim não há Deus; eu o cingirei, mesmo que você não me conheça. Para que se saiba, desde o nascente do sol até o poente, que além de mim não há outro; eu sou o Senhor, e não há outro” Isaías 45,1.4-6
O texto do profeta nos apresenta um exemplo dessa soberania indireta de Deus na figura do rei persa Ciro. O rei da Pérsia, apesar de não conhecer o Senhor, é escolhido para realizar a libertação de Israel e promover a reconstrução da cidade santa de Jerusalém e o templo do Senhor. Deus pode agir através de um pagão. De nós Deus quer mais, quer que sejamos instrumentos do seu amor, conscientes de que não há outro Deus além do Senhor.
Ciro, rei da Pérsia, é escolhido pelo Senhor e investido de um poder que só era dado aos reis de Israel. Ele é chamado como os demais reis de Israel, o “ungido”, que significa “Messias”, “Cristo”, título dado especialmente a David e que pertence definitivamente a Jesus.
Escolhido para ser o libertador do povo e promover a reconstrução do templo e da cidade de Jerusalém, Ciro é investido, por uma escolha pessoal de Deus. O Senhor chama-o pelo nome, dá-lhe um título glorioso e concede-lhe a insígnia do poder. Tudo lhe é concedido apesar de ele não conhecer o Senhor “quando ainda não Me conhecias”, realidade que lhe é recordada por duas vezes.
Este benefício não é concedido a Ciro para proveito próprio, mas em favor do povo do Senhor “por causa de Jacob, meu servo, e de Israel, meu eleito” e para que o seu nome seja conhecido em toda a terra “para que se saiba, do Oriente ao Ocidente, que fora de Mim não há outro. Eu sou o Senhor e mais ninguém”.
Apesar de não conhecer o Senhor e de nunca assumir o Deus de Israel como o seu Deus, Ciro reconhece que só o Deus de Israel é Deus e dá-o a conhecer em toda a terra.
Até aqui o princípio: é lícito, aliás, obrigatório na nova ordem de Jesus “pagar o tributo a César”, isto é, reconhecer o Estado, dar a própria contribuição na manutenção e na melhoria da ordem do mundo. Consideremos agora o exemplo concreto de Jesus. À primeira vista, é francamente decepcionante, especialmente se entendido no sentido de uma transformação de caráter político e social de seu tempo. É verdade que ele julga o poder com lucidez e desvela seu caráter muitas vezes opressivo e explorador (cf Lc 22,25), mas não faz nada de concreto para mudar isso. Não inicia uma revolução contra Roma, apesar dos convites, nesse sentido, feitos pelos zelotes. Não prega a sublevação dos pobres, ou a emancipação da mulher, não obstante o amor que tem por aqueles e por esta.
Contudo, a vida de Jesus transcorre entre duas condenações à morte por parte do poder do poder político: a primeira por parte de Herodes, quando Jesus era recém-nascido, a segunda por parte de Pilatos, no fim de sua vida. Jesus inquieta, portanto, o poder político. Este, com ele, não se sente mais seguro, sente-se ao invés minado em todos os níveis, e reage. Jesus é considerado mais perigoso do que todos os agitadores messiânicos que viveram antes dele.
Como se explica isso? Jesus prega a conversão, coloca, por isso, o machado na raiz do homem. Ele modifica o conceito de poder, substituindo-o pelo de serviço. O que acaba sendo o poder político e como continuará prosperando ainda sobre os ombros dos súditos se se aceita que aquele que governa seja como servo? (Lc 22,26). Jesus, acima de tudo, liberta o homem dos medos. Dos medos daqueles que podem matar o corpo, mas não podem matar a alma (cf Lc 12,4), isto é, daqueles que detêm o poder. Uma pessoa tão liberta é uma ameaça para o poder, porque ela está disposta a dar a vida até pelos irmãos, a arriscar, se for necessário, e dar a vida pela verdade, como fez Jesus mesmo, por primeiro (cf Jo 18,37).
O poder político e o militar são radicalmente relativizados. Pilatos foi o primeiro a se dar conta disso e reage: Não sabes que tenho poder para te soltar e para te crucificar? (Jo 19,10). Mas deve perceber logo que a ameaça feita a um homem como Jesus não serve, porque ele já está em “liberdade”. Desde aquele dia, diante de Pilatos, há uma possiblidade a mais sobre a terra de ser homem com dignidade.
Agora, vamos a nosso caso. Como se deve comportar o discípulo de Jesus diante do reino de César, isto é, do Estado e da ordem constituída? À primeira vista, emergiram duas soluções contrapostas. Da Palavra de Jesus sobre o tributo a ser dado a César deduzimos o dever de obediência e de colaboração com o Estado; mas do exame da atitude concreta de Jesus deduzimos o dever da resistência e de liberdade em face do Estado.
Obediência ou liberdade? Este é, portanto, o dilema de fundo. O Novo Testamento resolve este dilema: o discípulo de Jesus fica livre não só para resistir ao Estado, mas também para obedecer-lhe. O Estado não é mais um absoluto, um poder divino, como era antes da revelação do Reino de Deus. O discípulo o encontra em sua secularidade e pode aceitá-lo em liberdade, sem medo de cair na Estadolatria. Aceitá-lo e obedecer-lhe é, aliás, exigido pelo mesmo dever de obediência a Deus (cf. Rm 13,1ss).
Mas se o cristão é livre, ao mesmo tempo, de resistir ao Estado e de obedecer-lhe, é claro que dando ou negando seu consentimento não poderá deixar-se guiar pelo capricho ou pelo interesse pessoal, mas deverá tomar como critério a coerência entre um determinado regime político e a vontade de Deus, como se revelou em Cristo e como se revela na consciência de um cristão.
“Sempre damos graças a Deus por todos vocês, fazendo menção de vocês em nossas orações e, sem cessar, lembrando-nos, diante do nosso Deus e Pai, da operosidade da fé que vocês têm, da dedicação do amor de vocês e da firmeza da esperança que têm em nosso Senhor Jesus Cristo. Sabemos, irmãos amados por Deus, que ele os escolheu, porque o nosso evangelho não chegou a vocês somente em palavra, mas também em poder, no Espírito Santo e em plena convicção. E vocês sabem muito bem qual foi o nosso modo de agir entre vocês, para o próprio bem de vocês” 1Ts 1,1-5.
Paulo escreve esta carta aos Tessalonicenses, depois de ter recebido através de Timóteo notícias da vida cristã desta comunidade. Paulo estava preocupado porque tinha anunciado ali o evangelho apenas durante cerca de quatro meses. Temia que não tivessem perseverado no seu ensino. Porém, Timóteo traz boas notícias como se percebe nas primeiras linhas desta carta.
De fato, Paulo elogia “a operosidade da fé que vocês têm, da dedicação do amor de vocês e da firmeza da esperança em Nosso Senhor Jesus Cristo” e adianta que o evangelho não lhes foi anunciado apenas “com palavras, mas com obras poderosas, com a ação do Espírito Santo” e, foi pela ação divina que frutificou gerando uma comunidade de crentes conscientes de terem sido escolhidos.
Esta consciência está bem patente na afirmação de Paulo sobre a fé, o amor e a esperança dos tessalonicenses. Trata-se de uma fé ativa – sem desânimo; um amor com esforço – sem cansaço; uma esperança firme – sem desalento.
Na relação com Deus, o que conta em primeiro lugar não é o exterior, mas o interior. O amor a Deus não está assente numa troca de bens materiais, mas no bem supremo de uma relação filial, à imagem da relação de Cristo, o filho, com o Pai. A entrega mútua do Pai e de cada um de nós, numa correspondência total que implica a vida toda e toda a vida.
Foi esta a atitude dos cristãos de Tessalônica. Apesar de terem sido evangelizados, por Paulo, durante apenas escassos quatro meses, eles entenderam que a proposta do evangelho era dar tudo, uma fé ativa, uma caridade dedicada e uma esperança firme. Se é verdade que, no anúncio do evangelho, está presente a palavra e a ação do apóstolo, também é verdade que a adesão não foi uma questão exterior, de parecer bem, mas interior que implicou, de forma eficaz, a entrega de toda a vida. Por isso, o apóstolo dá graças a Deus por eles e reconhece que são a Igreja “que está em Deus e no Senhor Jesus Cristo”.
Eis, então, fundamentada para um cristão a necessidade de um juízo crítico sobre a realidade social e política que o cerca (isto o deixaria, tudo considerado, numa neutralidade e passividade de fato), mas também de uma sua participação ativa, de acordo com a posição que ocupa e de acordo com a própria vocação, procurando fazer que tal realidade se torne mais adequada ao desígnio de Deus e ao serviço do homem.
Quando é que o discípulo de Jesus deve dizer “não” ao poder e colocar-se naquele estado que João, no Apocalipse, chama de resistência? (cf Ap 13,10). Quando, em outras palavras, a liberdade deve prevalecer sobre a obediência? O Novo Testamento apresenta, sobretudo, a um caso: quando está em jogo a própria fé, quer dizer, quando o Estado se desvia dos planos de Deus e se ergue de novo como absoluto, como era antes de Cristo, e não permite mais “dar a Deus o que é de Deus”. É uma situação que se repete hoje, como sabemos, sob muitos regimes políticos, onde a Igreja é forçada ao silêncio e onde o cristão não pode, com toda sua lealdade, dizer um “sim” incondicional a tal Estado. Ele se se encontra num verdadeiro estado de perseguição.
Mas há também outro caso que não podemos deixar de mencionar: aquele em que o Estado procede mal em relação ao homem, porque tolera ou perpetua injustiças e prepotências, porque, embora não negando a Deus por palavras, ofende sua imagem que é o homem. São realidades políticas bem precisas e concretas também essas e talvez mais próximas de nós. Também aqui o cristão não poderá dar seu consentimento incondicional à ordem constituída. Seu imposto a César deve ser um tributo crítico, um compromisso ativo para a transformação da sociedade.
Aqui se conclui o que nos pode dizer, neste campo, o Evangelho. Fica muito campo de incertezas, tantas escolhas possíveis no plano concreto. O discípulo deve enfrentá-las com os outros homens, muitas vezes com incertezas e dramas. Decidir a quem apoiar, por qual objetivo lutar, que atitude tomar diante de uma greve, um debate, um referendum. Deve saber, porém, que o Mestre não o deixa totalmente só nem sequer neste campo concreto. A palavra que ouve, a Eucaristia que celebra são meios que formam nele uma consciência evangélica e o ajudam, como meditamos nesse Evangelho, a “brilhar sobre o monte mantendo alta a palavra de vida.”
É verdade que Deus pode despertar num pagão a capacidade de fazer o bem, mas também é verdade que de nós Deus espera mais, espera o bem animado pela fé, pelo amor e pela esperança.